quinta-feira, outubro 25, 2007

Cristóvão Colombo: O Enigma

(Portugal/França, 2007)



Ir à Mostra de Cinema de São Paulo e não assistir a um trabalho do lendário Manoel de Oliveira, o quase centenário cineasta português, com filmes presentes desde o início do evento, não é prestigiá-la como se deve, mesmo que se assista a 159 filmes por dia, enquanto enfia-se (ruminando-se) nacos de fast food goela abaixo entre uma sessão esgotada e outra, dormindo duas horas por dia, ou qualquer coisa parecida, só para dizer para os outros que viu tal filme da concorridíssima sessão hiper-super-über-cult. Também é uma forma de fugir um pouco da correria que o gigantismo que um evento como a Mostra sempre traz, de suas sessões canceladas, do atraso comum entre as filmes, do estresse de quem não conseguiu ingresso (ou se conseguiu vive reclamando alto para todo mundo ouvir que o filme não é bom, etc.), do trânsito sempre ruim de uma cidade inviável como São Paulo para ir de um cinema a outro, para melhor mergulhar no tempo muito particular dos filmes do velhinho lusitano, de uma lentidão contemplativa fora do tempo, anacrônica até, de um tempo suspenso no ar, estático, o que pede atenção a cada minuto. Um pouco como no último filme do Jacques Rivette, Não Toque no Machado, também de uma lentidão exata e elaborada, no ritmo de outro século, o do XIX, bem marcado pelo texto de Balzac, que exige uma mis-en-scène teatral à altura, finamente conduzida por Rivette e que tem sido malhado de uma maneira que considero até apressada e equivocada por alguns ditos cinéfilos com credencial e tudo. Mas, enfim.

Neste pequeno e belo filme sobre viagem e sobre desterro, Manoel de Oliveira amplia ainda mais o traçado percorrido no anterior Um Filme Falado (2003), com a mesma simplicidade artesanal na maneira de filmar daquele, que revisitava sem pressa as civilizações da Antigüidade e, principalmente, seus vestígios, suas ruínas, em Pompéia, na Grécia, no Egito, no mundo árabe, etc. Neste ainda mais breve, aponta suas lentes para o Novo Mundo e, em especial, para o seu descobridor, Cristóvão Colombo, na história de dois irmãos que, em 1946, despedem-se da mãe desconsolada (Leonor Silveira), e partem de Lisboa para Nova Iorque para se juntarem ao pai. No trajeto, sabiamente aprendem de outro viajante desterrado que “a vida é complicada, como as mulheres”. Na chegada, a cidade está coberta por névoas, num momento muito poético. Lá, um dos irmãos, Manuel (Ricardo Trêpa, neto do diretor), forma-se médico e, anos depois, volta a Portugal para se casar com Sílvia (a bela Leonor Baldaque). Ao longo dos anos, além do ofício da medicina, alimenta outra obsessão, ainda mais fascinante: a de historiador obcecado pela tese de que Cristóvão Colombo na verdade chamava-se Colon, conforme assinava nos documentos, e não era genovês, mas sim nascido numa pequena aldeia do Alentejo, Cuba, em Portugal. Como em Viagem ao Princípio do Mundo (1997), Oliveira conduz-nos para o interior dessa Portugal que parou no tempo a fim de encontrar as origens lusitanas de Colombo, o que ampliaria ainda mais o pioneirismo português como nação de navegantes que, além de ter traçado novas rotas para continentes conhecidos, também descobriu novos mundos. Fato corroborado, segundo hipótese de Manuel, o médico-historiador, de que Colombo teria nomeado de Cuba a maior ilha do Caribe supostamente como uma homenagem a seu vilarejo natal português. Já nos tempos atuais, em mais uma elipse, recurso recorrente nos filmes de Oliveira, Manuel volta novamente a Nova Iorque, sempre ao lado da esposa Silvia, que, no filme, agora são interpretados pelo muito simpático casal Oliveira, Manoel e Maria Isabel. E, assim, Manuel aproxima as proezas dos astronautas americanos ao pioneirismo quase suicida dos navegadores lusitanos, algo que vê com muita nostalgia, como bom português que é, sobrepondo eras, da modernidade americana ao arcaísmo português. Ao mesmo tempo, ainda que bem velhinho, mas cheio de vigor, não desiste de provar sua tese sobre o Colombo lusitano, talvez um mito, como o mito aqui relembrado da fundação de Lisboa pelo Ulisses da Odisséia, aquele que nunca existiu, mas que “foi por não ser existindo / Sem existir nos bastou. / Por não ter vindo foi vindo / E nos criou”, conforme célebre passagem de Mensagem de Fernando Pessoa. Passado é passado, mas para os portugueses ele está sempre presente, não sem alguma melancolia. Em Portugal, vive-se o passado no presente, de forma mística até. Não à toa, o casal é acompanhado o tempo todo por um misterioso anjo feminino, vestido com as cores da outrora gloriosa nação portuguesa até o final do trajeto, nos Açores, com a câmera apontando sempre para o mar e onde Mensagem volta novamente a ser recitado no belo poema que é O Mostrengo, cuja enunciação traz outra característica marcante de todos os filmes de Oliveira: a beleza com que filma, desde o início em galego-português, a palavra falada, mas sem aquele lirismo pegajoso daqueles ditos cronistas que vêem “poesia” forçada a cada minuto do dia.

4 comentários:

André Renato disse...

Preciso conhecer ainda os filmes de Manuel de Oliveira. Mas não consigo esquecer um cartum do Laerte onde a filha, num navio, pergunta pra mãe se a Baleia é um peixe; a mãe começa a explicar que a baleia é um mamífero e etc e etc e etc... A baleia, ouvindo essa conversa, diz: "Merda! Vim parar num filme de Manuel de Oliveira..."
hahahaha

Abraços!

Lorde David disse...

Hahaha. É um pouco isso mesmo, André. Muita falação. Mas uma bela de uma falação metafísica. Recomendo os filmes mais curtos dele, como Um Filme Falado, Vou para Casa, o delicioso Viagem ao Princípio do Mundo, Inquietude e este. Se pegar Amor de Perdição logo de cara, filme que, se não me engano, abriu a primeira mostra de cinema de SP, com suas essenciais quatro horas de duração, quase que inteiramente estáticas, é capaz de detestar tanto quanto muitos andam odiando o novo e belo filme do Rivette. Falando em baleia, acho que ele seria o cineasta ideal para uma nova adaptação de Moby Dick para o cinem, com John Malkovich como o Capitão Ahab, hehehe. Um abraço.

Michel Simões disse...

Mostra sem filme do Bom Velhinho, não é Mostra, se bem q dessa vez ele me decepcionou!

Lorde David disse...

É isso aí, Michel. Se bem que eu nunca me decepciono com os filmes dele, mesmo sendo um trabalho menor, ou mal-resolvido como este, pois gosto da sonoridade do Português filmado pelo Oliveira. É uma coisa única.