quinta-feira, janeiro 31, 2008

Paranoid Park

(EUA/França, 2007)



Um skatista, pendurando-se nos vagões de um trem em Portland, provoca a morte de um segurança da ferrovia. Morte acidental, está claro, mas que fará Alex, o responsável pela tragédia que abala a cidade, a se calar e a se reinventar emocionalmente por meio de palavras que vai rabiscando nas folhas dispersas de um caderno. Ato ocorrido, ato relembrado, refeito, enterrado, recontado aleatoriamente por intermédio da palavra escrita, que vai dando, em várias páginas rascunhadas, alguma forma e profundidade poética ao cada vez mais taciturno Alex, num mundo onde os adultos não se fazem presentes, a não ser desfocados ou nas breves aparições do detetive que investiga o caso, que os adolescentes skatistas fazem questão de zombar, ou do pai de Alex, além do segurança, que é cortado ao meio pelo trem ao tropeçar nos trilhos. Ato que obsessivamente se fará presente na caligrafia de Alex, que narra o filme, mas que ainda assim não dará conta de dar sentido a este seu universo particular de pais que se divorciam e adultos ausentes, em que outros jovens criam o seu próprio mundo acolhedor, representado pelo Paranoid Park do título, o parque onde os skatistas flutuam em manobras radicais, assim como o filme, e ponto de encontro de desajustados e a materialização posterior da paranóia de Alex, ao relembrar com culpa do ocorrido e o de querer contá-lo sem sucesso a alguém, calando-se, certa feita, para a namoradinha fútil que quer perder a virgindade, para o amigo Jared (ou se confundindo com ele) e dando as costas para o skate. É o diretor Gus Van Sant criando por meio de sofisticadas amarrações da banda sonora, mesclando o clássico de Beethoven ao melancólico som country, em imagens que também flutuam graças à fluida câmera de Christopher Doyle, o tédio e a opacidade desse universo adolescente, enigma e obsessão do diretor, mesmo em seus trabalhos mais redondinhos e convencionais, como Gênio Indomável (1997) e Procurando Forrester (2000), e que aqui ganha mais espessura pelo visual que mescla diferentes texturas de películas. Preenchido o caderno, no entanto, Alex volta para seu mundo, para o seu "Paranoid Park". As palavras não servem para a redenção, como em Encontrando Forrester. O autor do relato escrito mantém-se distante, amorfo, sem demonstrar remorso. Mantém-se assim o enigma e prevalece a contemplação do tédio e da alienação adolescentes, em filme que, obviamente, é também contemplativo em sua monotonia, à maneira do Van Sant de Gerry, Elefante e Últimos Dias.

terça-feira, janeiro 29, 2008

O Gângster

(American Gangster, EUA, 2007)



Copiando e prevalecendo sobre a estrutura das famílias mafiosas italianas de Nova Iorque, a fulminante trajetória do negro Frank Lucas, que, de motorista de um poderoso gângster do Harlem dos anos 70, torna-se o principal fornecedor da mais pura (e barata) heroína contrabandeada em aviões militares americanos vindos da Indochina, em plena guerra do Vietnã, e vendida nas ruas do bairro com o nome de “Blue Magic”. Frio e violento, porém, com uma ética toda voltada ao trabalho para atingir à sua maneira o sonho americano, Lucas vai à igreja aos domingos, ouve sempre a mãe, é dedicado aos parentes e casa-se na igreja com a esposa que ama e lhe é fiel. Paralelamente, a jornada de seu oponente, o honesto policial branco Richie Roberts, que, malvisto pelos colegas do distrito por ser correto até demais, passa a trabalhar para os federais com uma equipe recém-formada e encara com uma dedicação quase solitária a dura tarefa de derrubar o traficante celebrizado como "Superfly", ao mesmo tempo em que enfrenta problemas familiares e leva uma desregrada vida pessoal, tendo até mafiosos em seu restrito círculo de amizades. No meio deles, o corrupto policial Trupo, muito bem interpretado por Josh Brolin (Planeta Terror, Onde os Fracos Não Têm Vez), em mais um ótimo filme do diretor Ridley Scott (do formidável Falcão Negro em Perigo e do subestimado, mas belo Cruzada), aqui sem meios tons ou frescuras visuais estilizadas, atento aos detalhes, tornando-os quase sempre épicos e grandiosos, e com impecável recriação de toda a atmosfera de uma violenta e decadente Nova Iorque setentista, em contraste com o requinte da mansão "sulista" de Lucas, em que o bandido, vivido pelo bom moço Denzel Washington (sobrando no papel), e o bom moço, interpretado pelo bad motherfucker Russell Crowe (pra variar, sensacional, na terceira parceria com Scott), têm mais em comum do que imaginam, como antípodas que dialeticamente se complementam, algo recorrente na obra de Scott (vide Os Duelistas), ainda que o desenlace convencional dessa história baseada em fatos reais seja um tantinho desapontador.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias

(4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile, Romênia, 2007)



Logo no começo, um aquário ao lado de um relógio é filmado num quarto de duas estudantes universitárias, num alojamento estudantil onde reina o mercado negro e a absoluta falta de privacidade. Aquário que é a precisa metáfora visual deste sufocante drama romeno, que registra num tom demonstrativo, apenas observando de fora, em tempo real, a dura jornada de Otilia (Anamaria Marinca) para ajudar sua amiga e colega de quarto um tanto passiva, Gabita (Laura Vasiliu), a realizar um aborto ilegal numa cidade no interior da Romênia no final dos anos 80, com o regime comunista do tirano Nicolae Ceauşescu já nos estertores. No trajeto de Otilia para conseguir o dinheiro que falta, arrumar cigarros e sabonetes contrabandeados, reservar o quarto de hotel, despistar dedos-duros, levar o médico ao local, aceitar as condições do desagradável “doutor”, dar um merecido pé na bunda do esnobe namorado, que se acha superior por vir de uma família de técnicos e burocratas muito bem relacionados com o partido, e enfim tornar às ruas para se livrar do feto expelido, numa seqüência de escuridão assustadora, uma radiografia crua, em detalhes cotidianos e pequenas conversas cujos assuntos se repetem, de um regime em frangalhos e que se dizia igualitário, mas que, como todo regime totalitário que jaz decadente, força muitos de seus cidadãos a se rebaixarem da forma mais abjeta possível, tornando-os objetos de todo tipo de negociação, sem direito sequer à privacidade, como um aquário constantemente observado, ou melhor, “vigiado”, em enquadramentos predominantemente estáticos, austeros e rigorosos, onde muitas vezes o que importa de fato é o que fica fora da cena. Ou seja, o que não é filmado, contribuindo para a tensão gradativa que é tecida ao longo deste belo e concentrado trabalho do diretor Cristian Mungiu, em filme merecidamente premiado com a Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Destaque ainda para o rosto angustiado de Otilia, especialmente na cena em que se vê obrigada a jantar na casa da família do namorado enquanto longe dali sua amiga convalesce no quarto de hotel. Apesar da alegria familiar, tudo ao redor para ela é bastante incômodo. E para o espectador fora desse aquário, também.

sexta-feira, janeiro 25, 2008

O Caçador de Pipas

(The Kite Runner, EUA, 2007)



Dois meninos iranianos, ou melhor, afegãos empinam pipas coloridas e correm alegremente atrás delas no idílico Afeganistão do final dos anos 70, um pouco antes da invasão soviética. Um, Amir, é da etnia Pashtu, que faz parte da elite dominante e cosmopolita do país. Outro, Hassan, da etnia Hazzara, tida como inferior, é filho do empregado da casa de Amir e é sempre hostilizado com preconceito pelas crianças locais. Apesar das diferenças sociais, Hassan e Amir são quase como irmãos. No entanto, um violento incidente, em que Amir mesmo presenciando a cena se omite, termina por separá-los. Em seguida, a invasão dos comunistas força Amir e o seu bondoso e sábio pai (o excelente Homayoun Ershadi, de O Gosto da Cereja, 1997) a deixarem de vez o país e a fugirem para o Paquistão, indo viver depois na América. Anos mais tarde, já formado e casado, almejando virar escritor, em momentos que lembram o filme Nome de Família (2006), de Mira Nair, Amir tenta reparar o erro de sua omissão retornando ao arruinado Afeganistão natal, agora dominado pelos obscurantistas barbudões do Talibã, num filme folhetinesco, baseado em romance idem, repleto de coincidências inacreditáveis e cujo esquematismo da estória escrita originalmente por Khaled Hosseini lembra o de um roteiro de Paul Haggis (de Crash - No Limite, 2005), apesar da ótima ambientação do começo, da trilha de Alberto Iglesias e do bom uso que o diretor Marc Forster faz das elipses que pontuam a narrativa. Forster, porém, já bem mais interessante no duro drama A Última Ceia (2001) e no criativo Mais Estranho que a Ficção (2006). Aqui, menos cativante que Em Busca da Terra do Nunca (2004), se encarrega sobretudo de extrair emoção barata à Walter Salles, a serviço de senhoras e senhoritas mal-amadas e de fãs do livro original.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Oscar

Com toda pompa e brevidade, finalmente veio o anúncio dos indicados ao Oscar de melhor filme estrangeiro, deixando fora da disputa pela dourada estatueta desnuda o nosso fofo representante nacional, para a tristeza inconsolável de muitos deste nosso povo patriota, torcedor, com ginga, molejo e samba no pé, e dos inúmeros fãs do Pedro Bial, do Jeca Camargo e do Arnaldo Jabor. No lugar do nosso O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, os sábios da Academia escolheram entre os cinco filmes finalistas até um representante do Cazaquistão, Mongol. Mongol, vejam só! Isso quer dizer que até um Mongol é capaz de ser melhor e mais glorioso que todo o cinema brasileiro. Dãaa...



Chora, menino, chora. Oy vey (ó dor)!

quarta-feira, janeiro 23, 2008

A Culpa é do Fidel!

(La Faute à Fidel, França/Itália, 2006)



Passa pelos olhos muito expressivos de uma menina de 9 anos de idade, Anna (a sensacional Nina Kervel-Bey), todo o contexto político do turbulento início dos anos 70. Filha de pais da alta burguesia que acabam aderindo à militância esquerdista pró-Allende e pró-Cuba, vê sua confortável casa diminuir de tamanho quando ela e seu irmão François se mudam para um apartamento menor, que é constantemente invadido por malcheirosos barbudões vermelhos que nada têm a ver com o Papai Noel. Também é dispensada das aulas de catolicismo que tanto gostava e vive uma rotina desconfortavelmente igualitária, alimentando-se de iguarias exóticas e desagradáveis a cargo de empregadas e babás refugiadas políticas da Indochina ou da Grécia. E entre reuniões de dogmáticos militantes de esquerda e visitas a seus avós reacionários, porém mais afetusos que os secos esrquerdistas, como parte do processo de crescimento, aprende com seu flexível olhar infantil, e de um jeito bem pessoal, a se adaptar às novas exigências e a conviver com múltiplas e disparatadas opiniões de adultos intransigentes que, muitas vezes, estão muito mais sem rumo na vida do que ela, pela câmera sempre observadora da diretora Julie Gavras, filha do célebre diretor politizado Constantin Costa-Gavras (Z, Estado de Sítio, Missing, Atraiçoados), que nunca sai da altura de Anna até o belo plano final no pátio da escola. Ora terno, ora divertido em suas ironias, um filme sempre agradável e de incrível poder de síntese diante de um período pra lá de complexo.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Heath Ledger (1979-2008)



E assim começa o ano: http://cinema.uol.com.br/ultnot/2008/01/22/ult4332u623.jhtm
http://www.omelete.com.br/cine/100010472/Morre_Heath_Ledger.aspx

Eu Sou a Lenda

(I Am Legend, EUA, 2007)



Will Smith, aqui como o cientista e militar Robert Neville, vivencia os males modernos da solidão urbana numa grande metrópole após um vírus, originalmente criado pela ciência para erradicar o câncer, ter dizimado mais de 90% da população mundial. Imune à infecção, a última esperança da Terra vive solitária num grande e bem equipado apartamento-laboratório em Manhattan na companhia apenas da cadela Sam e, durante o dia, tenta manter a sanidade recolhendo os despojos da civilização em ruas tomadas por mato, carros abandonados, prédios esvaziados e animais selvagens a solta. À noite, tranca-se em casa para se proteger do que sobrou do restante da humanidade: aberrações ferozes que habitam as trevas e se alimentam de sangue e restos humanos. Também não abandona as pesquisas em busca de uma cura para o vírus. E diariamente transmite mensagens de rádio na esperança de ir ao encontro de algum sobrevivente não-infectado. Numa atmosfera inicial de abandono que lembra bastante Extermínio (2003), de Danny Boyle, esta terceira adaptação do livro homônimo de Richard Matheson (a primeira, Mortos que Matam, de 64, com Vincent Price, seguido de The Omega Man - A Última Esperança da Terra, de 71, com Charlton Heston) caminha muito bem até o aparecimento das criaturas, pecando em soluções visuais manjadíssimas e na falta de suspense no ataque em massa dos vampiros-zumbis, quando o limitado, mas que ser quer estiloso diretor publicitário Francis Lawrence (de Constantine, 2004) põe quase tudo a perder ao apelar para sustos previsíveis e explosões genéricas, além de um desfecho banal e precipitado a cargo da “crente” brasileira interpretada por Alice Braga, como outra sobrevivente que finalmente responde ao chamado de Neville. Diz o diretor que ele rodou um final alternativo e mais fiel à obra de Matheson. Mesmo assim e antes do enfrentamento gore plastificado, Will Smith, melhor e mais contido quando está na companhia de cães, cobaias e manequins de videolocadoras que quando apela para as suas totalmente deslocadas gracinhas no momento em que se vê diante de outros sobreviventes ao explicar sobre Bob Marley, por exemplo, carrega até que bem boa parte do filme, e os "rohmerianos" planos iniciais da Times Square, do prédio das Nações Unidas, do porto de Nova Iorque e da Washington Square desolados e esvaziados das costumeiras multidões, lembrando um pouco do clima da cidade logo após o 11 de setembro, são bastante interessantes de se ver.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A Espiã

(Zwartboek/Black Book, Holanda/Alemanha/Bélgica, 2006)



Nazismo, patriotismo, heroísmo... nenhuma ideologia resiste intacta à beleza da atriz Carice van Houten, capaz de fazer até o alto oficial nazista render-se a seus encantos e virar a casaca, especialmente em tempos de guerra. No caso, final da II Guerra Mundial, numa Holanda ocupada por nazistas, onde ela interpreta uma judia cantora de negros cabelos que, após ver a fazenda onde se refugiava ser acidentalmente bombardeada, tenta fugir, mas seu barco é metralhado por nazistas, a sua família, morta e os despojos, saqueados. Sobrevivente, ou quase, já que ressurge de um caixão como que ressuscitada, com a cruz no peito, outro nome, cabelos e até pêlos pubianos tingidos de loiro, ela se junta à resistência com a missão de se infiltrar no quartel do comando alemão em Haia. Obviamente, os nazistas também contarão com agentes infiltrados dentro dos oposicionistas. Como em Lust, Caution, de Ang Lee, as imperfeições humanas farão com que se aproxime até demais do oficial nazista (Sebastian Koch, de A Vida dos Outros) que deveria matar, mas que não é tão nazista assim, ao contrário de vários de seus "honestos" colegas saudados como heróis depois da queda dos alemães, num ótimo filme de espionagem de guerra às antigas, repleto de reviravoltas inacreditáveis, em que ninguém é o que parece ser, o verdadeiro enigma humano por trás de aparências heróicas ou repulsivas, que o notável diretor holandês Paul Verhoeven, de Robocop, O Vingador do Futuro e Tropas Estrelares, com menos escatologia que nesses filmes e regresso a sua terra natal e aos tempos em que filmou Soldado de Orange (1978), sem meios tons, trata de explorar ao máximo até os instantes finais, quando uma suave subida da câmera na grua revela que nem em um bem protegido kibutz israelense, local que abre e fecha o filme, a belíssima heroína parece ter encontrado o seu porto seguro, ao contrário do que indica a placidez das águas do lago na região.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Partículas Elementares

(Elementarenteilchen, Alemanha, 2006)



Um achado transpor da França para a Alemanha, terra do sexo comercializado livremente e padronizado em vitrines, clubes de prostituição, swing e sex shops, esta adaptação de consagrado e polêmico livro do francês Michel Houellebecq, que misturava sátira social e ficção científica. Ainda assim, germânica demais. Ou seja, correta, quadrada, sem grandes nuances ou lances de genialidade por parte do até competente diretor e também roteirista Oskar Roehler, relativamente fiel ao material original, com boa fotografia, belas mulheres e bons atores, dentre os quais se sobressai Moritz Bleibtreau (de Corra, Lola, Corra e A Experiência e ganhador, por este filme, do Urso de Prata de melhor ator na Berlinale do ano passado). Ele interpreta Bruno, professor de colégio que foi criado pela avó, longe do pai, decadente e alcóolatra cirurgião plástico, e da mãe, típica representante hiponga e libertária da geração de 68, aquela que dizia amar a humanidade embora detestasse o indivíduo (a não ser que esse indivíduo fosse um bandido ou um assassino, ou seja, uma “vítima” do sistema capitalista), devota da liberdade sexual e que corria o mundo em busca de diferentes parceiros e experiências místicas, comportamento errático elegantemente espinafrado por Houellebcq no livro. Quando a avó morre, Bruno vai para um internato, onde será hostilizado e seviciado e crescerá amargurado pelo abandono da mãe. Adulto, com pouco mais de 30 anos, é depois deixado pela esposa, que tira dele o filho pequeno. Constantemente deprimido, assedia suas belas alunas adolescentes e, depois, já separado, mergulha numa série de aventuras sexuais que lhe serão frustrantes até conhecer, numa colônia de naturismo e sexo tântrico, Christiane (Martina Gedeck), com quem passará a desfrutar uma vida a dois bastante aberta e libidinosa em boates e clubes de swing e sadomasoquismo. De escrita sangüínea, tenta também se tornar, sem sucesso, um escritor à direita, racista porque revoltado com negros bem-dotados e, por conseguinte, mais bem sucedidos no sexo e nas conquistas sexuais que ele. Já seu monástico e determinista meio-irmão, Michael (Christian Ullmen), também criado por outra avó e tendo passado grande parte da vida “dedicado a reflexões e devaneios solitários”, é um frio e renomado cientista que deixa o cargo de biólogo geneticista num instituto na Alemanha para, em meio às vacas na Irlanda, retomar antigas pesquisas suas sobre replicação do DNA e clonagem humana, um trabalho que vai mudar a história da humanidade e transcendê-la. Antes, ao retornar para a cidade natal para tratar da remoção do corpo da avó do cemitério local, outro cadáver reaparecerá, pois se reencontra com uma antiga paixão de infância, Annabelle (Franka Potente, a Lola corredora dos esvoaçantes cabelos vermelhos, aqui loiríssma), com quem retoma e aprofunda a relação, que terá também a sua carga de sofrimento, no entanto. No livro, as vidas opostas dos dois irmãos seguiam trajetórias paralelas, mas bem equilibradas entre si e de alguma forma se conectavam. Já o filme, pontuado por flashbacks, tende a se centrar mais no comportamento permissivo da sexualidade autodestrutiva de Bruno, tanto que o trabalho de Michael, que irá decretar o fim da reprodução humana sexuada, dando fim ao sexo como o conhecemos, pois para ele sexo e seus primitivos impulsos, instintivamente ligados a reprodução e perpetuação da espécie, é fonte eterna de angústias, privações, conflitos e sofrimentos, dos quais o seu irmão é um dos mais emblemáticos exemplos, é relegado a segundo plano ou a uma breve tela final explicativa. No livro, essa nova mudança de paradigmas engendrará uma mutação que não será mental, mas genética, em nível molecular, e o desfecho da obra, evocando o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, é descrito em páginas das mais pungentes, cruéis e impactantes. Também na obra original, todas as provocativas digressões sociais, culturais e científicas que intercalam a narrativa, e são mantidas no filme aqui e ali na forma de diálogos menos inspirados e muitas vezes sentenciosos, são fascinantes. Aqui, o impacto final do livro acaba se diluindo em meio à resolução em aberto do drama familiar que, ao menos, é mostrado objetivamente, mantendo-se fiel à prosa sem floreios de Houellebecq, que dirige para este ano ainda uma espécie de continuação não-oficial deste Partículas..., intitulada A Possibilidade de Uma Ilha, também baseada em livro seu sobre a clonagem já estabelecida na Terra. É estranho voltar a Houellebecq bem neste momento, a todo o seu pessimismo mordaz e implacável contra a humanidade e a seus estúpidos "ceresumanos", mas reafirmo ser ele um dos autores essenciais para se compreender essa solidão devastadora de nossos tempos tão tecnologicamente avançados, mas que por algum motivo, biológico talvez, ainda nos faz reféns da ilusão amorosa, gerando alguma expectativa e depois mais solidão.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

A Ciência dos Sonhos

(The Science of Sleep/Le Science des Rêves, França/Itália, 2005)



Stéphane (interpretado por um bastante carente e antipático Gael García Bernal) é um artista ultracriativo, que quando está sonhando é capaz de criar infinitos mundos a sua volta com cenários de papelão, rios de papel celofane e animações de barbante e tricô. Como apresentador do programa “Stéphane TV”, dá a sua receita para a “ciência dos sonhos” na frente das câmeras de papelão, sendo capaz de intervir nesses sonhos e de trazer várias pessoas que cruzam o seu caminho, e que freqüentemente despreza, para esse universo onírico, onde freqüentemente dá asas a seu pouco apreço pelo mundo exterior, tentando purgar-se de relacionamentos frustrados e também da relação mal-resolvida com a mãe francesa (Miou-Miou), entre outras coisas. Porém, a realidade é menos "fofinha", especialmente depois que se muda do México para a não tão romântica Paris, para morar com a mãe. Lá, ela arruma para ele um trabalho numa minúscula editora que publica calendários. Achando que iria criar as mais belas e inusitadas ilustrações para as folhinhas, acaba na verdade virando um mero fotocompositor gráfico de um estúdio de quinta categoria, ao lado de indivíduos absolutamente banais ou grosseiros, como o sexista colega interpretado pelo sempre divertido Alain Chabat, algo frustrante e muito aquém do que aspirava para si em seus sonhos de papelão. Um dia, para complicar, encanta-se com a sua vizinha Stéphanie (Charlotte Gainsbourg, apagada), pois, até por causa do nome em comum, vê nela a sua parceira ideal. Porém fica tão dependente e obcecado por ela, que mesmo fisgando-a direto para o seu mundo de fantasia, percebe que nem nesse universo paralelo é plenamente correspondido. E no mundo real, mesmo que ela demonstre genuíno afeto por ele, as coisas vão se tornando ainda piores, à medida que sua obsessão e insegurança por ela aumentam. É preciso trazer um pouco desse seu mundo onírico para a realidade e intervir nela a partir dos sonhos. Assim, partindo da esquizofrenia do mal-amado protagonista-sonhador, mundos fantásticos vão se sucedendo a ponto de não se distinguir mais a realidade do sonho, num filme em que o videoclipeiro diretor Michel Gondry, do superestimado O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), numa trama confusa, ora psicanalítica, ora surreal, ora simplesmente banal, descarrega mais uma vez o seu conhecido arsenal de imagens hypadas, aqui quase sempre em stop motion, tornando toda a criatividade do protagonista naquilo que julga ser uma aberração sem fim, incômoda distorção da realidade, em sonhos que estão mais para pesadelos de um Freddy Krueger de pano excessivamente carente que para os de um romântico príncipe encantado dos contos de fada. Mas há, ainda assim, algo de muito verdadeiro no comportamento de Stéphane, do tipo rapaz criativo, incapaz de se encaixar neste mundo dos meros mortais, bastante honesto no que diz, que conhece por acaso uma garota solitária, que lhe dá alguma trela e por isso acha que ela precisa da companhia dele a todo custo e mais do que nunca, tentando estar sempre junto dela, dividindo afinidades até o dia em que percebe que as coisas não são bem assim. Que ela o quer apenas como amigo, e também a uma certa distância, o que ele não consegue conceber para a sua realidade própria, idealizada, o que o faz sofrer ainda mais. E, pior, para machucá-la, tenta romper com ela em definitivo, rechaça-a, afasta-se bruscamente, mesmo que ela não queira vê-lo totalmente afastado. E assim o rapaz acaba se tornando mais uma vítima de seus próprios atos do que um injustiçado. Creio que isso seja doloroso, frustrante e facilmente (auto)identificável para muita gente, pena essas intenções mais realistas serem solapadas pela constante necessidade de Gondry querer se afirmar a todo custo por meio de imagens rebuscadas e trilha sonora legalzinha e que atrapalham bastante o andamento do filme, que, ao menos, está bem longe de ser aquela comédia romântica ultracool e superficial que muitos andam "sonhando" a respeito.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Meu Nome Não é Johnny

(Brasil, 2007)



Baseado em livro-reportagem de Gulherme Fiuza, a trajetória real de João Estrella (hoje produtor musical), que, de jovem surfista maconheiro da classe média alta da Zona Sul carioca passou a ser, em fulminante ascensão, um dos principais fornecedores de cocaína para o jet set e beautiful people da galera bronzeada do Rio de Janeiro. Também era um dos principais consumidores de seu próprio veneno, já que cheirava quase todos os seus dividendos. Sempre ao lado de sua mística namoradinha (Cléo Pires), também se envolveu num perigoso, mas lucrativo esquema de tráfico para a Europa, onde tudo era farra e festa, como sempre fora na sua vida desregrada. Porém, tanta inconseqüência tem um custo, claro, pois um dia é pego em flagrante, encarcerado na cadeia da Polícia Federal para depois ser levado a julgamento, num filme que segue demonstrativo e bem-humorado até a entrada em cena da juíza do caso (Cássia Kiss), com o seu olhar severo e moralizante, mas campassivo, que o livra da cadeia, e com direito a discurso redentor de seu arrependido protagonista no final. Ainda assim, um digno trabalho do diretor Mauro Lima, num filme que, no geral, sem querer ser moderninho a todo custo e apesar da temática, é surpreendentemente espirituoso, dinâmico, muito longe da bomba que andam cotando por aí, com divertidas seqüências, como a do “passeio” noturno de João com dois policiais corruptos que querem achacá-lo a todo custo, mas na maior "tranqüilidade", e ele na maior pindaíba, ou a sua estadia em Veneza, quando tenta flertar com uma ragazza local, enrolando-se num macarrônico italiano e agüentando depois os ciúmes da esposa, e levado sobretudo por mais uma inspirada e carismática interpretação de Selton Mello, além da boa ambientação do Rio de Janeiro dos anos 80.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Allegro

(Dinamarca, 2005)



Zetterstrøm (Ulrich Thomsen, de Brothers, 2004) é um virtuoso pianista solista, totalmente dedicado a aperfeiçoar a sua arte. Tanto que há tempos, desde a infância, quando descobriu a música como refúgio para a solidão, deixou de lado as suas emoções para melhor se dedicar à execução pianística irreprochável, embora fria e controlada. Seu único amor ocorre por acaso quando, em Copenhague, ao esquecer a chave de seu apartamento depois de um concerto, conhece a belíssima Andrea (Helena Christensen, ex-Miss Dinamarca), que quebra o gelo de seu coração. Porém, esse amor que surge de repente numa falha sua, acaba de repente, pois Zetterstrøm, controlador, homem implacável da técnica, não é capaz de se abrir ao amor e suas incertezas por muito tempo. E com o rompimento, rompe também com o passado, perdendo toda a sua memória, desde a infância, o tempo do aprendizado artístico e até as lembranças dos momentos íntimos ao lado de Andrea. Não perde a técnica, porém. Assim, refugiado em Nova Iorque, sem um passado, dedica-se com afinco à carreira profissional cada vez mais excêntrica e solitária, a ponto de, nas apresentações, tocar no escuro e exigir que a platéia use vendas para que não o veja sobre o palco, apenas ouça o que está sendo tocado. Tempos depois, um homem misterioso o procura e lhe diz que suas memórias estão armazenadas num lugar chamado A Zona, área impenetrável surgida misteriosamente num quarteirão de Copenhague, onde ninguém sabe o que tem dentro. Na capital dinamarquesa para um concerto, Zetterstrøm consegue adentrar na Zona. Porém, quando sai de lá, passa a tocar desafinado, para seu desespero.

Um filme à maneira do pretensioso diretor dinamarquês Christoffer Boe, que, da mesma forma que nos superiores Reconstrução de um Amor (2003) e Offscreen (2006), busca desconstruir seus personagens ou prendê-los a existências inusitadas, desconstruindo a película, ou melhor, a imagem digital de seus filmes com todo tipo de intervenções visuais que se querem pós-moderninhas, como granulações, diferentes linguagens, chicotes, desfoques, filme dentro do filme, reality film, etc., como nos trabalhos de Michel Gondry (de O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, 2004). Aqui, porém, elas surgem mais discretas, na forma de ingênuas animações que narram a infância de Zetterstrøm, por exemplo, ou em algumas distorções na imagem. Ao contrário do título, que, na música, indica o andamento mais rápido ou mais "alegre" numa sinfonia ou concerto, por exemplo, o resultado aqui é frio e monótono, como um Solaris tipicamente nórdico, apesar da trilha pontuada por composições de Bach e alguns bons momentos, como quando Zetterstrømm toca um pequeno piano de cauda num passeio público, lembrando o Linus Van Pelt da turma do Charlie Brown. Só faltou o cobertorzinho...

segunda-feira, janeiro 14, 2008

O Suspeito

(Rendition, EUA, 2007)



Eita ano que começa mais uma vez bem devagar, quase natimorto, com as coisas e o que deveria importar mais, o reencontro com conhecidos e conhecidas, a cada semana, ficando só para o sempre depois do Carnaval e olhe lá. Bom, cada um com as suas exclusivas obrigações sociais, fazer o quê. Pelo menos o tal do Carnaval vem mais cedo este ano. Enquanto isso, há o excelente Atonement, com o ridículo título de Desejo e Reparação nos cinemas daqui, e também nas livrarias e com título mais correto de Reparação, de Ian McEwan. E há também este bom filme do diretor Gavin Hood, cujo anterior, o irregular Infância Roubada (2005), ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2006. Neste, um engenheiro químico egípcio, Anwar El-Ibrahimi (Omar Metwally), mesmo com Green Card e casado com uma americana (Reese Whisterspoon), após voltar de uma conferência na África do Sul, é detido no aeroporto de Washington sob a suspeita de estar envolvido num atentado que matou um agente americano da CIA no Egito. E, sob a alegação jurídica da Rendição Extraordinária, em que um suspeito de terrorismo pode ser capturado sem qualquer aviso pelo governo americano e transportado para escuras e labirínticas prisões fora do país para interrogatório, diga-se tortura, sem acusação formal ou direito a advogado, pois estaria fora da jurisdição dos EUA, Anwar é levado de volta para a África, onde, no Egito, é torturado por Abasi Fawal (o bom ator israelense Yigal Naor), chefe da polícia local, sob a supervisão do novato agente da CIA Douglas Freeman (Jake Gyllenhaal), em sua primeira e top secret missão de “tortura”. Um pesadelo digno de Kafka. Ao mesmo tempo, a esposa de Anwar, grávida, empreende em Washington uma jornada por gabinetes de políticos e assessores para descobrir o paradeiro do marido e até tentar se aproximar da rígida Secretária de Estado Corrine Whitman (Meryl Streep), responsável pela transferência secreta dele.

Depois do esquizofrênico O Reino (2007), do regular O Preço da Coragem (2007) e do bom Leões e Cordeiros (2007), mais uma vez o Oriente Médio como foco eterno de perturbações ligadas ao terrorismo para o Ocidente, muito por culpa do próprio Ocidente. Pois se questiona aqui a atuação moral dos agentes, analistas e políticos ocidentais para com seus próprios cidadãos, num filme coral, com vários personagens se entrelaçando de maneira até bastante óbvia, quando não inverossímil, e que está mais, no tom de suas várias narrativas que correm paralelamente, mesclando dramas familiares diversos com fanatismo, terrorismo que nasce entre os jovens estudantes das mesquitas e atuação autoritária da polícia do Egito em sua repressão, sem muita sutileza no tratamento, para os típicos melodramas corais egípcios como A Outra (1999), do cada vez mais tosco Youssef Chahine, ao recente Edifício Yacoubian (2006), de Marwan Hamed, do que para o excelente thriller Syriana (2005), também um filme coral. O fato de boa parte deste O Suspeito ser falado em árabe, além da boa ambientação no país, só corroborou essas minhas impressões. Ainda assim, interessante e envolvente de se assistir, por conta do sólido elenco, que conta ainda com Allan Arkin, como um senador, Peter Sarsgaard como o seu assessor e ex-namorado da esposa de Anwar, e da boa condução de Gavin Hood, inclusive na reviravolta final, que, por conta da ótima montagem, de fato, me pegou de surpresa.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

Conversas Com Meu Jardineiro

(Dialogue Avec Mon Jardinier, França, 2007)



Amigos inseparáveis nas travessuras da infância, separados depois pelas diferenças de classes com o fim dos estudos primários numa escola do interior da França, já que um, aqui certa feita apelidado de Dupincel (o sempre confiável e muito trabalhador Daniel Auteuil, de 36, Caché, Meu Melhor Amigo, Pintar e Fazer Amor, O Oitavo Dia, A Rainha Margot, etc.), é filho do proprietário da farmácia local, e o outro, apelidado de Dujardin (Jean-Pierre Daroussin, habitual colaborador do cineasta Robert Guédiguian, de Armênia e A Cidade está Tranqüila), de operários. O mais abastado, claro, vai estudar Artes Plásticas em Paris. Torna-se pintor de relativo êxito, especializado em retratar a calmaria do campo, onde se refugia na antiga propriedade da família para trabalhar e para esquecer um pouco o fato de que sua esposa o está deixando. E o outro se torna ferroviário na região até a aposentadoria, eventualmente trabalhando como jardineiro, até que um dia vai trabalhar na horta da propriedade de Dupincel, onde se reencontram. Aos poucos, as memórias os reaproximam, relembram anedotas e percebem que pouca coisa mudou no vilarejo em relação às folclóricas figuras locais, deixando de lado, em cada bate-papo, as diferenças sociais. Dupincel, por exemplo, encanta-se com a sabedoria popular de Dujardin, a ponto de utilizar parte do discurso do jardineiro, num momento divertido, para desmascarar um sujeitinho pretensioso, desses que existem às turras em eventos culturais e artísticos por aí, num vernissage em Paris.

Simpático filme de Jean Becker, filho do grande cineasta Jacques Becker (Grisbi, Casque D´Or, A Um Passo da Liberdade), que é exatamente o que enuncia o seu título: várias conversas entre o pintor e o jardineiro, entrecortadas por belas e tranqüilas imagens do campo e uma cena ou outra em Paris ou em Nice, onde o jardineiro passa as férias fora de temporada com a sua amada esposa (Hiam Abbass, de Free Zone e Munique), sem qualquer metáfora político-social, como quiseram ver alguns. Mas sobretudo boas e agradáveis conversas, diretas, cheias de humor, em que tipos antagônicos aprendem a enxergar o melhor de um e de outro, num belo exercício de alteridade, coisa rara hoje em dia, fazendo brotar novamente afinidades e interesses em comum, num filme simples e singelo, que é dirigido sem muito esforço por Becker, apoiado basicamente no charme dos dois protagonistas e na bela fotografia contemplativa. Mais isso basta, além de um final sinceramente comovente, ao som do sempre esplêndido concerto para clarineta e orquestra de Mozart, que certamente colabora para levar muitos às lágrimas. Como diria Voltaire, ou melhor Cândido, temos mesmo é que cultivar o nosso jardim, além de estar sempre com um Opidel (faca) e barbante para qualquer situação, como bem ensina Dujardin. E sem metáforas, por favor.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

The Nicest Films in Town...

Sem ordem de preferência, com exceção dos três primeiros filmes dirigidos por DAVIDs, que, para mim, merecem todos os holofotes do mundo, hehehe, abaixo alguns memoráveis destaques dentre as películas vistas no ano de 2007. Ano que, se fora das telas, foi um tanto tenebroso, para não dizer coisa pior, cheio de frustrações e oportunidades perdidas, dentro dos cinemas foi nada menos que sensacional, como há muito não se via. Tivemos o retorno triunfal de grandes mestres como Lumet, Herzog (num filme que é uma deliciosa patriotada típica dos anos 80, em que se aprende coisas úteis, como abrir algemas, fazer fogo na selva tropical e armazenar comida no meio da merda!), Cronenberg, Resnais ("Paris, te odeio"), Chabrol, Friedkin, Loach, Frears, os irmãos Coen (que devem ganhar todos os prêmios este ano, friendo!), mais um duplo Clint Eastwood (não consigo separar os dois filmes!) e o sucesso estrondoso do brasileiro Tropa de Elite, mais que um filmaço, um fenômeno cultural, além da volta de James Gray emplacando mais um ótimo drama policial familiar que paga tributo ao já citados Lumet, Friedkin e também a Coppola. Aliás, o policial foi o gênero que mais se destacou, tanto no intricado, mas fortíssimo e exigente Zodíaco, prova indiscutível da maturidade de David Fincher, calando a boca de muitos de seus detratores, como na hilariante comédia policial Hot Fuzz, assinada pela imbatível dupla Edgar Wright-Simon Pegg. E o que dizer do desconcertante e rigoroso quebra-cabeça sensorial de David Lynch, que incomodou tanta gente? Para mim, uma obra rigorosa de gênio e não uma viagem de um videomaker maconheiro, como se rotulou por aí. E as mulheres? Pois tivemos ainda grandes interpretações de belas ladies, como a da multifacial Laura Dern revivendo a Alice na Terra das Extravagâncias de David Lynch, a da corajosa Marina Hands como a clássica adúltera Lady Chatterley da rousseauniana adaptação contemplativa de Pascale Ferran, a da cínica Isabelle Huppert como uma juíza cheia de “charme”, mas “matadora de homens” (“Charmant-Killman”, de A Comédia do Poder, outra vez em matadora sintonia com Chabrol), a da paranóia desglamourizada de uma apaixonada Ashley Judd de Possuídos, e a menção toda especial à nobre Helen Mirren como a única e verdadeira Rainha da Inglaterra. Além de mais comédia, com destaque para o ascendente cinema romeno, feito com tão poucos recursos, mas usando a precariedade a seu favor como corrosiva sátira política e social em A Leste de Bucareste, e os pratos chiques, que despertam lembranças e emoções, preparados por um muito fino ratinho de esgoto que vira o inusitado chef de um tradicional restaurante parisiense. Sem deixar de mencionar um western crepuscular de arquitetura primorosa, retomando Kubrick, Malick, Peckinpah e até Ford, pois mata o homem para fazer nascer o mito, levado por uma belíssima trilha sonora de Nick Cave e Warren Ellis, e o melhor e mais vibrante musical dos últimos tempos, ponto alto e surpreendente da carreira do até então medíocre Adam Shankman, refilmando e reelaborando a acidez de John Waters e botando novamente o travestido John Travolta para dançar e rebolar. Assim, sem mais, como anunciaria James Marsden, ou melhor, o mestre de cerimônias Corny Collins de Hairspray, roll call:

INLAND EMPIRE, DAVID Lynch
Zodíaco, DAVID Fincher
Senhores do Crime, DAVID Cronenberg
Onde os Fracos Não Têm Vez, Joel e Ethan Coen
A Leste de Bucareste, Corneliu Porumboiu
Antes que o Diabo Saiba que Você está Morto, Sidney Lumet
Lady Chatterley, Pascale Ferran
Tropa de Elite, José Padilha
A Comédia do Poder, Claude Chabrol
Hot Fuzz, Edgar Wright
O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, Andrew Dominik
Possuídos, William Friedkin
A Rainha, Stephen Frears
Os Donos da Noite, James Gray
Ratatouille, Brad Bird
A Conquista da Honra/Cartas de Iwo Jima, Clint Eastwood
Medos Privados em Lugares Públicos, Alain Resnais
Ventos da Liberdade, Ken Loach
O Sobrevivente, Werner Herzog
Hairspray, Adam Shankman

E, finalizando, os destaques pra lá de negativos:

Baixio das Bestas, Cláudio Assis
O Búfalo da Noite, Jorge Hernandez Aldana
Norbit, uma Comédia de Peso, de Brian Robbins
Cem Escovadas Antes de Dormir, Luca Guadagnino
Angel-A, Luc Besson

Assim, longa vida aos DAVIDs e, principalmente, aos brothers Coen! Amém.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Hot Fuzz

(Reino Unido/França, 2007)



“Yarp!”

De acordo com a ágil e muito bem sacada abertura deste filme de Edgar Wright, Nicholas Angel (Simon Pegg) é o melhor oficial da Polícia Metropolitana de Londres. Sério e dedicado, detém o recorde de prisões e detenções, é especialista em controle de motins e tumultos, em prevenção ao crime, em estourar bocas de fumo e também em conquistar a simpatia dos cidadãos, em jogo de xadrez, esgrima, piruetas, direção perigosa e até em manobras radicais com uma bike! Isso tudo evitando ao máximo disparar uma arma, mesmo quando vez ou outra é esfaqueado por suspeitos travestidos de Papai Noel! Tão bom e eficiente que faz seus colegas da Força, ou melhor, do “Serviço”, parecerem uns maricas incompetentes. Assim, seus embaraçados superiores, alegando que ele pode querer ser o “xerife de Londres”, decidem transferi-lo para o interior da Inglaterra, mais precisamente para Sandford, um daqueles típicos e pitorescos vilarejos britânicos onde todos se conhecem, as pessoas são sempre amáveis, sorridentes, promovem concursos de jardinagem, fazem quermesse para arrecadar fundos para a reforma do teto da paróquia local e que, há anos, é sempre eleito o “vilarejo do ano”. Às vezes, um ou outro morador esconde arsenais inteiros nos porões de suas fazendas. Mas isso é o de menos... E é para lá que Nicholas, agora sargento, tem que rumar na companhia de seu inseparável “lírio da paz japonês”, onde chega expulsando e fichando adolescentes do pub, no melhor estilo "tolerância zero". No entanto, por causa das baixíssimas taxas de crime da cidadezinha, Nicholas não tem muito o que fazer a não ser tentar capturar um ganso fujão (“The Sandford Most Wanted Citizen”), tomar Cornetto durante as pacatas rondas diurnas com seu novo e simpático parceiro Danny Butterman (Nick Frost), o gorducho filho do inspetor (o sempre irreprochável Jim Broadbent), aspirante a Mel Gibson, doido para botar para quebrar naquela modorra, pois grande fã de filmes de ação policial, especialmente de Bad Boys II e Caçadores de Emoção, além agüentar as piadas infames de seus colegas nada sérios quando, por exemplo, seu nome sai grafado errado no tablóide do vilarejo como “Angle” pelo incompetente jornalista local, Tim Messenger (Adam Buxton). No entanto, suspeita-se de tanta tranqüilidade, especialmente quando vários cidadãos respeitáveis ou nem tanto de Sandford começam a ser mortos de maneira bem violenta. Ainda mais porque todo mundo, inclusive seus colegas da corporação, por preguiça ou falta de prática em lidar com assassinatos, atribuem insistentemente as bizarras mortes a meros acidentes. Menos Nicholas, claro, que teimosamente parte para investigar sozinho os supostos crimes. Ou com alguma ajuda. E não somente de seu lírio ou do ganso fujão...

Mais uma divertidíssima parceria da dupla Edgar Wright-Simon Pegg, os mesmos criadores da antológica série Spaced e da ótima sátira/homenagem aos filmes de zumbis que aqui teve o título de Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004). Em Hot Fuzz, como Shaun of the Dead, ambos nunca lançados nos cinemas daqui, juntam um humor bem britânico à sátira feita às películas policiais americanas de ação à Michael Bay e aos buddy movies no estilo Máquina Mortífera, evitando-se, no entanto, as tiradinhas espirituosas à Will Smith e a sucessão e a repetição gratuita de gags forçadas, parodiadas dos filmes originais, como ocorre na já desgastada cinessérie Todo Mundo em Pânico ou no péssimo Deu A Louca em Hollywood (2007). Some-se a isso a ótima montagem, que garante uma transição quase perfeita entre uma cena e outra, além de caprichadas seqüências de ação, calcadas diretamente de Bad Boys e também do western, como no engraçado tiroteio final. E, acreditem, ainda sobram farpas para Romeu+Julieta, de Baz Lurman, e o filme é ainda mais abrilhantado com as participações de Timothy “James Bond” Dalton, como Simon Skinner, o mordaz gerente do supermarché local, de Paddy Considine (de Terra de Sonhos, 2002, Dead Man's Shoes, 2004, e O Ultimato Bourne, 2007), como o bigodudo e um tanto escroto investigador Andy Wainwright, de Martin Freeman (da série The Office original), em rápida aparição como o Sargento de Nicholas em Londres, e Bill Nighy (de Shaun..., Simplesmente Amor, 2003, The Girl in The Café, 2005, Notas de um Escândalo, 2006) como o Inspetor-Chefe de Nicholas na Polícia Metropolitana, sem deixar de mencionar a irresistível química dos protagonistas Pegg-Frost, repetindo a dupla campeã e hilariante de Shaun of the Dead. Uma das melhores comédias do ano passado que, deixando de lado a fina veia romântica de Shaun...(aqui não há um interesse amoroso para Nicholas e, se há, é despachado logo no começo), parte direto para a testosterona e, principalmente, para um humor dos mais corrosivos.

terça-feira, janeiro 08, 2008

Coisas que Perdemos pelo Caminho

(Things We Lost in the Fire, EUA, 2007)



Depois de um necessário período offline, sem fazer qualquer promessa inútil para o 2008 que se avizinhava, lendo Lawrence Block, Patricia Cornwell e Darkly Dreaming Dexter, praticando saudáveis esportes ao ar livre, como tiro ao ganso ("Adoro o cheiro de pólvora pela manhã! Cheira a vitória!") e pesca ilegal de trutas, trocando olhares, sorrisos e flertes diários com as corredoras de belas pernas bronzeadas do Parque Portugal campineiro, além de comer paçoquinha vez ou outra no lugar da farofa do peru, eis que retorno nem tão gloriosamente por estas bandas largas deste ainda nebuloso e incerto Ano Novo para fazer o que faço melhor. Ou seja, abrir como ninguém home pages, blogues e sites diversos, ler e-mails, deletar e-mails, rascunhar e-mails nunca enviados, deletar rascunhos desses e-mails nunca enviados, pesquisar no Google, baixar sinfonias ou composições emblemáticas do dodecafonismo vienense e trilhas musicais variadas a partir do período atonal, bisbilhotar no Orkut ou na Amazon.com, ou apagar sem ler e sem culpa spams de pesadas telas edificantes de PowerPoint “como nunca antes neste paíz”, essas coisas. Eventualmente, atualizar este espaço meio abandonado com um breve comentário sobre mais este bom filme da diretora dinamarquesa Susanne Bier. Oriunda do movimento cinematográfico dinamarquês DOGMA 95, que revelou nomes como o polêmico Lars Von Trier (Os Idiotas, Dançando Escuro, Dogville) e Thomas Vinterberg (Festa de Família, Querida Wendy), Bier estréia firme em Hollywood num drama não muito distante das características formais que definiram aquele movimento, como o uso espartano da música, iluminação naturalista, cortes bruscos na montagem, às vezes propositalmente truncada, câmera quase que o tempo todo na mão, mas sem "treme-treme", colada no rosto dos atores ou acompanhando-os sempre, uma estória que, no rascunho, tende ao melodrama e, principalmente, ênfase nas interpretações. Além disso, na trama, como não poderia deixar de ser, há muitos pontos de contato com seus trabalhos anteriores, especialmente com Brøthers (2004) e Depois do Casamento (2006). Neles como neste, um “outsider”, aqui muito bem vivido por Benicio Del Toro como um junkie tentando se livrar do vício da heroína, devido a um trágico acontecimento, é inesperadamente reunido a um meio familiar estranho a ele, pois tipicamente burguês. O marido (David Duchovny, o eterno Agente Mulder da série Arquivo-X e o “fornicador” da nova série Californication) fora assassinado, deixando sua esposa (a bela Halle Berry) e os dois filhos obviamente desconsolados. No entanto, há uma coisa que liga a família a esse “forasteiro”, além da cerimônia fúnebre para a qual é inesperadamente convidado: o patriarca, um bem-sucedido empreendedor imobiliário, morto com um tiro enquanto tentava salvar uma desconhecida do espancamento pelo marido agressor, era o seu único amigo e dele nunca desistira, mesmo diante das circunstâncias que naturalmente os afastariam. A ausência inesperada dele deixa a casa com mais quartos vazios. Como pretexto para terminar de reformar um cômodo detruído após um incêndio, o estranho, recuperando-se do vício, vai ocupar um dos quartos por inexplicável convite da viúva. E, como em Brøthers, ele vai se aproximar da família, sobretudo dos filhos, e do vizinho (John Carroll Lynch, de Zodíaco). Também como em todos os filmes da diretora, inclusive Corações Livres (2002), a cumplicidade entre esses indivíduos desnorteados vai aos poucos se estabelecendo essencialmente pelos olhares, captados por belos planos-detalhes por sua observadora câmera. No entanto, sem lágrimas em excesso nesses olhos tristes que vislumbram uma redenção possível, pois essa estória, melodramática na aparência, é dirigida com o máximo de contenção por Bier, que ainda assim, e mais uma vez, não deixa de atualizar a seiva do melodrama clássico: aqui nunca rasgado, mas sempre visceral.

PS: E com algum atraso, a todos os leitores e eventuais xeretas que acompanharam este blogue ao longo do muito difícil ano de 2007, ora buscando somente sacanagem, ora lendo, comentando ou até divulgando os posts daqui, e especialmente ao brother Osvaldo Neto e ao sempre companheiro Ailton Monteiro, um feliz 2008, livre de brigas, frustrações e conflitos mesquinhos e que as emoções cinematográficas ou principalmente aquelas vividas fora das telas sejam ainda mais intensas e realizadoras para todos. Sempre. Um grande abraço e boa fortuna.