sexta-feira, dezembro 21, 2007

Bee Movie – A História de Uma Abelha

(Bee Movie, EUA, 2007)



Se por trás de sua arrojada animação computadorizada Formiguinhaz (1998) era sobretudo um autêntico filme do Woody Allen levado ao universo das formiguinhas trabalhadoras, Bee Movie, de estrutura semelhante, é o longa-metragem em 3-D em que, desta vez, o grande comediante Jerry Seinfeld (também produtor e co-roteirista) leva para dentro de uma colméia todas as suas neuroses tipicamente nova-iorquinas. Nela, Seinfeld, como Barry B. Benson, é um zangão recém-graduado que descobre que passará o resto da vida no emprego que escolher dentro da colônia, voltada, claro, para a produção de mel em larga quantidade, trabalho altamente especializado e com uma enorme divisão de trabalho. Saindo para um passeio fora da colméia e em busca de novos ares, encanta-se com a florista Vanessa (Renée Zellwegger) e fica amigo dela, que não estranha nem um pouco o fato de seu novo colega ser um tanto “abelhudo”. E ainda por cima falar demais e querer comprar briga com as grandes corporações que roubam o mel das abelhas, levando o caso para os tribunais. Mas como é Seinfeld o cara por trás dessa boa causa, como já sabemos de vários episódios da clássica série, nem sempre o seu empenho em agir com boas intenções resultará em algo de bom, tanto para as abelhas quanto para os humanos. Trama para adultos e crianças, que se desenrola com muita leveza, a animação é ágil, os tipos secundários cativantes, o visual agrada e, sobretudo, as boas tiradas típicas do Seinfeld do sitcom garantem o resto desta “doce” diversão descompromissada da DreamWorks, que inclui ainda engraçadas “ferroadas” para cima de Sting, Ray Liotta e Larry King, além de justas citações paródicas a filmes como A Primeira Noite de um Homem e Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu! Acima de tudo, bom para matar as saudades de Jerry.

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Império dos Sonhos

(INLAND EMPIRE, França/Polônia/EUA, 2006)



“Estranho o que o amor faz”, entoa em certo momento o refrão da assombrosa música-tema composta e cantada pelo próprio David Lynch sobre os “fantasmas do amor”. Esse amor proibido que faz mal à atriz Nikki Gracie (Laura Dern), mulher casada com um homem poderoso e controlador e, que após se envolver num affair perigoso com o galã mulherengo Devon (Justin Theroux), com quem contracena na nova produção do cineasta Kingsley (Jeremy Irons), é arrastada para uma apavorante, inexplicável e labiríntica jornada em que, além do papel em que atua, assumirá múltiplas personalidades, tema recorrente na obra de Lynch, e caminhará em percursos descontínuos por cômodos escuros habitados por prostitutas que, certa feita, dançarão alegres ao som de “Locomotion”, becos sombrios com poloneses oriundos dos anos 40, ruas cobertas de neve e com tristes prostitutas polacas, escadarias, corredores de hotel, terá seu rosto espancado, esbofeteado e literalmente deformado, ao longo das três fascinantes horas de duração deste INLAND EMPIRE. Porém, antes de o filme de Nikki entrar em produção, uma cigana (Grace Zabriskie, assustadora) a visita e a alerta sobre um assassinato que ocorreria fora da trama do filme e, no tom bastante sinistro que seu discurso de forte sotaque eslavo vai assumindo, com o seu rosto fora de proporção, deformado pela lente grande angular, fala sobre como o mal se impregnou no mundo e sugere que Nikki traria em si a sua variação, como a menina que se perdeu no mercado e passou a enxergar o “amanhã”, sem saber distingui-lo do “ontem” e do “hoje”, tornando-se além de atriz, espectadora daquilo que virá para si. O filme em que atuará e se perderá em seus cenários, em diferentes pulos no tempo, na verdade, é uma refilmagem de um antigo filme situado no Leste Europeu, outrora baseado num conto cigano e que nunca fora concluído, pois os dois atores principais teriam sido assassinados durante a produção. Assim, paira sobre esse projeto abortado a fama de amaldiçoado, inclusive pelo seu nome original, em alemão “Vier-Sieben”, ou “47”, número considerado maldito, informação mantida oculta pelos produtores do remake. Essa lenda urbana de filme maldito, nunca completado, lança a todos os envolvidos no projeto uma espécie de aura maligna, acentuada pelas luzes do set que mal iluminam o que deve ser iluminado. Ao contrário, em seus desajustes, expõem todos à escuridão. A própria claridade da cena romântica no gazebo no jardim cenográfico tem que ser desfeita ou deixada para trás logo em seguida para que se apronte outro set no interior do escuro estúdio. Aos poucos, ambos os filmes, o do passado e o do presente, se misturam, assim como a vida da atriz principal ou “real” se funde com a da ficção e com a(s) de outra(s) mulher(es) que encontra em seu tortuoso percurso. Ora Nikki se torna uma mulher pobre, suburbana, ora uma mulher agressiva, abandonada pelo marido, amargando um filho morto, que conta para um lacônico terapeuta (ou um detetive ou um policial), em sessões num sujo escritório, todos os abusos sofridos por homens, até uma hora em que se perde enlouquecida na constelação das estrelas impressas na calçada da fama de Hollywood, largada ferida na sarjeta onde vomita sangue sob o olhar indiferente de mendigos que lá habitam. De atriz vira prostituta com outras prostitutas. Ou volta a ser atriz. À espreita, seu marido e um “Fantasma” a observam, a perseguem, a assustam, a atormentam, enquanto tudo parece ser assistido na televisão de um quarto de hotel por uma mulher, ou “Lost Girl” (Karolina Gruszka), que chora copiosamente. Ao mesmo tempo, em várias cenas que pontuam o filme, os Rabbits do sitcom da Internet criado por David Lynch, na verdade uma família de humanos com cabeça de coelhos, quase nada fazem a não ser aguardar numa sala de estar, proferindo frases banais, mas que provocam gargalhadas típicas de claques de seriados cômicos de TV, tornando o filme uma espécie de simulacro do espetáculo televisivo. Ainda assim, por mais passivos que sejam esses rabbits, também "vazam" para outros ambientes ou se fundem a outros personagens.

Sem dúvida, o mais desconcertante (ou para muitos de seus detratores, o “mais desconjuntado”) trabalho de Lynch, que aqui abdica radicalmente da clareza narrativa (mas não da narrativa em si, está claro, pois lança várias pistas e sinais que remetem uns aos outros ao longo do filme, que são sempre retomados ou intensificados num coeso jogo de associações visuais) e de seus fáceis jogos de identificação para apagar de vez as fronteiras entre o sonho, o devaneio, o espetáculo cinematográfico, o televisivo e o que se chama de realidade, na verdade um todo imposto pela representação cinematográfica fabricada e manipulada pela mão artística do diretor, ao mesmo tempo atraído por Hollywood e anti-hollywooodiano por excelência. Representação erguida aqui de forma mais bruta, desorientadora, pelas imagens muitas vezes mal-cuidadas, nem sempre muito nítidas, pois captadas por pequenas e flexíveis câmeras digitais de menor definição que as câmeras HD. Ainda assim, imagens essas bastante perturbadoras e hipnóticas em sua natureza mais áspera, intensificadas pelo clima de pesadelo empregado pelo diretor, obcecado que é com os sonhos, e onipresente em cada quarto percorrido. Só Lynch, com toda a sua radicalidade estética que lhe é notória, consegue impor um clima ameaçador a um simples abajur que oscila num quarto escuro, elevando o volume das caixas acústicas a patamares inquietantes. Aliás, o trabalho sonoro aqui, como sói acontecer na obra de Lynch, é dos mais envolventes e sensoriais. Ajuda a tornar o medo sentido a cada passo dado pela esplêndida Laura Dern pelas portas que adentra muito real, epidérmico, de provocar genuínos calafrios, como há muito não os sentia, especialmente na cena que se abre com a fusão de uma pintura de um palhaço com a imagem de Dern correndo na escuridão em direção à câmera ou em toda a seqüência do confronto com o “Fantasma”, cujo rosto se transfigura no rosto deformado dela para depois derreter grotescamente. É Lynch transmutando o tempo todo as peças do seu quebra-cabeça móvel, que se abrem para outros encaixes e (muitas vezes inúteis) possibilidades interpretativas, além de incorporar nesse percurso fragmentos de outros trabalhos, como Mulholand Drive, A Estrada Perdida, Darkened Room, o já citado Rabbits, Os Últimos Dias de Laura Palmer e, sobretudo, evocar o clima bem mais experimental de Eraserhead.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

Armênia

(Le Voyage en Arménie, França, 2006)



O diretor marselhês Robert Guédiguian (dos ótimos Marie-Jo e Seus Dois Amores, 2002, e O Último Miterrand, 2005), de origem armênia, como atesta o sobrenome (terminado em “-an”, como Atom Egoyan e Chahnour Varinag Aznavourian, o popular Charles Aznavour), volta à terra de seus antepassados neste um tanto longo, mas interessante road movie, que narra a jornada da médica francesa Anna (Ariane Ascaride, mulher e habitual colaboradora do diretor) à Armênia em busca do pai (Marcel Bluwal), que desaparece de Marselha e teria partido para viver seus últimos dias na pátria natal, após ser diagnosticado com uma grave doença cardíaca. No país, ex-república soviética de língua e alfabeto muito particulares e a mais antiga nação cristã do mundo, com um histórico de opressão, massacres e diáspora de seu povo muito semelhantes aos infortúnios sofridos pelos judeus, aos poucos Anna vai descobrindo que não importa tanto onde está seu pai e sim onde se ocultam as suas próprias origens. No começo, tal qual uma teimosa francesa, resiste, como demonstra a cena em que, depois de ter ido à manicure, arranca as unhas postiças colocadas para se fazer parecer mais “armênia”. Porém vai-se redescobrindo, à medida que toma contato com a milenar história, sociedade, música e cultura armênias, em imagens de cartão postal e diálogos muitas vezes tirados de guias turísticos, a cargo principalmente de um general bandidão e trambiqueiro, porém charmoso (Gérard Meylan, outro fiel parceiro de Guédiguian) que a guia pelo país e, certa feita, a livra de uma encrenca daquelas com contrabandistas, traço comum em muitos dos países do Leste Europeu, que, após a derrocada do comunismo, encontraram-se dominados por máfias violentas, que comandam a prostituição e o tráfico de todo tipo de mercadoria e se escondem em inúmeros negócios de fachada na capital Yerevan. Apesar dos tipos esquemáticos, do tom panfletário à Ken Loach e das situações muitas vezes pueris, sobretudo quando o filme envereda por uma desajeitada e muito forçada subtrama policial envolvendo uma jovem cabeleireira, a chance de vislumbrar pelas telas do cinema mais uma região remota, a “terra das pedras”, cuja história remonta aos tempos bíblicos, desde Noé e o Monte Ararat, símbolo do país (embora hoje pertença aos rivais turcos) e cuja imagem emblemática, primeiro num fundo de palco pintado, depois na representação cinematográfica da montanha autêntica, abre, acompanha a protagonista em seu périplo, pontuando várias cenas importantes, e, enfim, encerra o filme. Nas imagens do Monte, Guédiguian, fazendo uso de suas costumeiras tonalidades ensolaradas, parece dizer que “o Monte está logo ali, mas não está. Não pertence a nós, embora faça parte de nós, armênios, sempre, na Armênia ou fora dela”.

quinta-feira, dezembro 13, 2007

Novo Mundo

(Nuovomondo, Itália/Alemanha/França, 2006)



Flertando vez ou outra com o realismo fantástico, o diretor Emmanuele Crialese (do “rústico” Respiro, 2002) recria, em três partes bem definidas – a vida nada idílica na Sicília, a viagem de navio e o processo de entrada nos EUA – e com certo rigor e tomadas sintéticas, a saga da imigração italiana para a América pelos olhos do viúvo Salvatore Mancuso (Vincenzo Amato), seus dois filhos (Francesco Casisa e Filippo Pucillo), um deles surdo-mudo, e sua mãe “curandeira” (Aurora Quattrocchi), que, no início do século XX, embarcam da paupérrima e rural Sicília para a riquíssima Nova Iorque na terceira classe de um navio abarrotado de gente com as mesmas esperanças: a de um dia fazer a vida na América. No caminho, em meio ao mar revolto, o aperto e a insalubridade das acomodações, encontram uma misteriosa inglesa (Charlotte Gainsbourg) que precisa arrumar um marido a fim de poder ser admitida no Novo Mundo. Mancuso se prontifica a se casar por conveniência com ela, mesmo correndo o risco de ser passado para trás após o desembarque.

Filme econômico, quase documental em seu registro naturalista, como na seqüência em que se recria com detalhes todo o difícil processo de admissão e entrada nos EUA, com exames e todo tipo de testes, às vezes humilhantes, aplicados na triagem aos recém-chegados, quebrado vez ou outra por momentos um tanto deslocados de visões oníricas, mas no todo com belas imagens, como a visão que o simplório, mas muito expressivo Mancuso tem de Nova Iorque através das janelas embaçadas do porto da Ilha de Ellis. Nova Iorque, aliás, nunca é mostrada como conhecemos, a não ser do interior do porto de imigração, o que garante algum frescor sem deslumbramento a mais este olhar sobre o corriqueiro tema da imigração dos italianos (e de outros povos) ao Novo Mundo, além da presença sempre enigmática e fascinante de Gainsbourg.

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Conduta de Risco

(Michael Clayton, EUA, 2007)



Mais uma vez estamos de volta à paranóia dos anos 70 com este suspense-denúncia de ritmo cadenciado e ausência quase completa de trilha sonora, em que o discreto Michael Clayton (George Clooney), ex-promotor público, é agora o responsável privado de uma grande firma de advocacia de Nova Iorque por limpar as sujeiras dos importantes clientes que representa, antes que elas atinjam as pás do ventilador da mídia, ainda que ele, endividado, com um negócio falido, filho pequeno e divorciado, não consiga dar conta da própria bagunça que é a sua vida pessoal. Nem sequer fala com o irmão alcóolatra e ex-gerente de seu negócio. Para piorar, o seu amigo Arthur Edens (Tom Wilkinson, em notável atuação), brilhante, embora maníaco-depressivo (o mais correto seria dizer que sofre de “transtorno bipolar”. Mudam-se as denominações, por uma questão semântica ou politicamente correta, mas o mal permanece igualzinho, tsc, tsc...) brilhante advogado da firma, responsável pela defesa de uma grande corporação química numa ação litigiosa, surta. Na verdade, um surto de lucidez, já que muda de lado e passa a defender as vítimas do bilionário processo, que se arrasta há anos, em que a empresa citada é acusada de contaminar os fazendeiros e seus familiares de uma região dos EUA com os agrotóxicos cancerígenos que produz. Clayton obviamente é enviado para discretamente apagar o incêndio e convencer Arthur, que tirou a roupa no meio de uma audiência e foi preso, a reassumir seu papel, para beneficio dele e da firma, obviamente. Perceberá depois que ele mesmo faz parte de um esquema em que é uma mera peça a ser manipulada e depois descartada por forças mais poderosas, quando não mais tem utilidade.

Um filme do estreante Tony Gilroy (roteirista dos filmes de Jason Bourne), de atmosfera soturna, realista, em que os embates são essencialmente verbais, com a ação, lenta, avançando por meio de ótimos diálogos e uma cuidadosa construção da trama em flashbacks, que aos poucos vão compondo um sórdido quebra-cabeça, de onde se destaca uma seqüência de assassinato feita sem cortes e assustadora em sua eficaz simplicidade e frieza. Para isso, a atuação precisa de todo o elenco, em especial Clooney, Wilkinson, Sidney Pollack, como o chefe de Clayton, e a sensacional Tilda Swinton, como uma das chefonas da firma, controladora, agressiva, impessoal, despida de qualquer lado emocional mais evidente, tendo aderido por completo às engrenagens corporativas, empresta ainda mais solidez a este belo trabalho de Gilroy.

terça-feira, dezembro 11, 2007

Os coelhinhos estão chegando...



INLAND EMPIRE ou, pior, Império dos Sonhos, sexta, finalmente nos cinemas. Não tente jamais entendê-lo, porque as peças aqui mudam de face o tempo inteiro. Sinta-o simplesmente e bons sonhos, se conseguir dormir depois... Bú!

Across the Universe

(EUA, 2007)



No cinema, a diretora de teatro americana Julie Taymor já foi beeem mais inventiva no maquiavélico Titus (1999) e até no superficial, mas colorido Frida (2002), compensando os personagens rasos e convencionais deste último com uma riqueza visual fora do comum em cada seqüência. Aqui, numa longa mistura que evoca Hair com Rent (só que sem a Aids!!!), com um pouco de Pink Floyd – The Wall e muito, mas muito amor livre ou nem tanto, porque “All We Need is Love”, “Love is All We Need”, “All My Loving”, várias canções conhecídissimas dos Beatles, inclusive a do título, servem de gancho e evolução para a estória rasteira e cheia de óbvias referências visuais do estivador inglês de Liverpool (claro!) e wannabe artista plástico propositalmente chamado de Jude (Jim Sturgess) que, na busca pelo pai na América e, sobretudo, pelo auto-conhecimento (o que quer que isso seja), encontra a sua muito bem-nascida "Lucy In The Sky With Diamonds” (Evan Rachel Wood), a sua cara-metade. Antes, conhece também Max (Joe Anderson), o rico irmão de Lucy. Max, playboy da fraternidade, abandona a faculdade em Princeton e todos partem para morar juntos numa república na Vila Madá, ou melhor, num loft no Greenwich Village nova-iorquino, dividindo o espaço com outros artistas, como a sexy cantora Sadie (Dana Fuchs) e seu amante, o músico Jo-Jo (Martin Luther McCoy), em plena efervescência cultural e política do final dos anos 60. Com a contracultura a todo vapor, a guerra do Vietnã explodindo e o movimento de Martin Luther King pela igualdade racial pegando fogo, o jubilado playboy Max é literalmento convocado pelo Tio Sam a servir na Indochina. Sem escapatória, claro. E Jude vê a engajada Lucy aderir cada vez mais às passeatas e movimentos contra a guerra. E, pouco ligando para a política, sente perdê-la para a causa. No fundo, costurando inúmeras referências da época, uma sucessão irregular de clipes mais calculados que verdadeiramente delirantes ou menos extravagantes do que se poderia esperar de um material desses, mesmo quando “The Benefit of Mr. Kite” dá origem a uma seqüência circense cheia de malabarismos visuais estrelada por Eddie Izzard, ou quando Bono aparece travestido de Dr. Robert, guru espiritual da galera, e engata nossos heróis por uma jornada psicodélica ao som de "I Am The Walrus" num ônibus escolar riponga em direção à Califórnia, para juntos fazerem todos “o teste do ácido do refresco elétrico”. Tudo de mentirinha. Os nossos heróis ficam no meio do caminho. Assim como o filme. Mas as mais de 30 canções dos Beatles que empurram o que sobra da narrativa são sempre irresistíveis, mesmo quando cantadas pela (boa) voz dos atores e em arranjos de ritmo muitas vezes mais lento do que o usual, como “Let It Be” ou “I Want To Hold Your Hand”, aliás um belo momento entoado pela “Dear Prudence” (T.V. Carpio), lamentando no início do filme um amor não-correspondido.

No fundo, apesar da forma e da temática anos 60, um filme muito, mas muito careta, totalmente condicionado ao amor monogâmico de hoje em dia, que é emblemático na busca de Jude por Lucy, na busca da parceira ideal, da cara-metade dos sonhos artificialmente coloridos e da necessidade de exibi-la para todo o mundo como um troféu, como um fetiche agarrado, como demonstra a cena final no alto do prédio, declaração coletiva de amor pretensamente romântico que não esconde o seu conservadorismo triunfal. Isso em época de amor livre, de amor grupal, de amor coletivo, negando o verdadeiro espirito da contravenção amorosa dos anos 60 em cada fotograma retocado artificialmente e sintonizando-o a estes nossos tristes tempos em que ninguém parece disposto a ficar só ou a buscar em vários parceiros ou relacionamentos de descobertas os seus vários amores que se completam, senão um único que se quer que se jure o tempo todo que será eterno, sacramentado, com papel passado e tudo, depois pelo casamento, ou pelo morar juntos que, aos olhos da lei, ganhou a estranha e medieval denominação de "concubinato". Ou seja, pelo supostamente viveram felizes para sempre, pelo dividir a casa juntos, por fazer planos de classe média para o futuro somente depois de alguns meros encontros, vislumbrando um ideal que não existe. Se existisse, não haveria, em contrapartida, tanto divórcio por aí. Com papel passado e tudo.

segunda-feira, dezembro 10, 2007

O Sobrevivente

(Rescue Dawn, EUA, 2006)



Com jeitão daqueles filmes de guerra da capinha azul distribuídos pela saudosa América Vídeo nos anos 80 e um final deliciosamente patriótico, daquele bem militarista, tipicamente americano, no entanto, um POW movie à maneira do loucão do Werner Herzog (Aguirre – A Cólera dos Deuses, Fitzcarraldo, Cada Um por Si e Deus Contra Todos, ou melhor, O Enigma de Kaspar Hauser, Coração de Cristal, O Homem Urso), largando os personagens para serem pouco a pouco engolidos pela natureza impiedosa que os cerca ou enlouquecerem de vez, ou então obsessivamente lutarem contra ela para sobreviver, às vezes de maneira inútil. Aqui, no caso, a história real e já mostrada antes por Herzog no documentário O Pequeno Dieter Precisa Voar (1997), do piloto alemão naturalizado americano Dieter Dengler (Christian Bale), que, em 1965, um pouco antes da escalada da guerra no Vietnã, é convocado com sua esquadrilha para uma missão ultra-secreta de bombardeio a alvos da guerrilha vietcongue no vizinho Laos. Seu avião é abatido, ele sobrevive, mas é feito prisioneiro no meio da selva, numa região de difícil acesso, pouca comida e vietcongues pra lá de caricatos. Além disso, é mantido numa cabana abafada, algemado a colegas um tanto desanimados, exaustos, esquálidos ou já bem louquinhos, como o Gene interpretado com todos os tiques conhecidos 'por Jeremy Davies. No entanto, a atitude positiva do sempre sorridente e engenhoso Dengler, capaz de abrir algemas, confeccionar facas e racionar a escassa comida, os motiva a tentar uma fuga arriscada pela densa selva escura e, enfim, ocultar-se nela, em momentos mais próximos aos dos emblemáticos filmes de Herzog estrelados pelo psicopata do Klaus “Aguirre” Kinski, sobretudo pelo lado demonstrativo, direto, com que a sobrevivência deles é mostrada. Até a cena da jangada à deriva no rio, de Aguirre, se faz presente aqui. Envolvente, filme conduzido sobretudo pela ótima atuação de Christian Bale, totalmente entregue ao papel e mais do que disposto a levar seu personagem ao limite, como bem teria lhe exigido o diretor, embora evitando deixar-se tomar pela loucura, mesmo nos momentos mais desesperadores, em que o olhar arregalado ou exausto de seu parceiro na fuga, brilhantemente vivido por Steve Zahn, num papel atípico, dá a exata medida do que teriam passado os soldados reais da história. Que venha agora o Rambo IV!

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Monstros de Quatro Olhos

(Four Eyed Monsters, EUA, 2005)



Jovens narcisistas vão para Nova Iorque cheios de aspirações artísticas e com o supremo desejo de encontrar a sua cara-metade. Conquistar a metrópole e também corações e se tornar junto com a tão sonhada amada o temível ou então mais do que desejado “monstro de quatro olhos” do título. Na maioria das vezes, no entanto, acabam virando garçons, garçonetes, vendedores, balconistas e, pior, ficando ainda mais solitários. Almas desencontradas que um dia se encontram pela Internet, como é o caso do videomaker Arin (Arin Crumley), que ganha a vida editando vídeos de casamento, filmando o “amor dos outros monstros de quatro olhos”, embora acalente o sonho de se tornar cineasta. E, claro, de ser amado. Mas, totalmente inseguro e travado para falar com as mulheres, além de paranóico com a possibilidade de adquirir alguma doença sexualmente transmissível, conhece pela rede digital a simpática artista plástica e então garçonete Susan (Susan Buice). Juntos, iniciam um relacionamento inusitado, em que só conversam via chat, e-mail, torpedos, scraps, trocando depoimentos gravados em vídeo ou bilhetinhos, centenas de bilhetinhos o tempo todo. Quase nunca se falam diretamente, cara a cara. Também quase não se tocam. E o filme, escrito e dirigido pela dupla de protagonistas, vai incorporando essas diferentes linguagens a sua estética pós-moderna, feita de cortes rápidos, diferentes cores e texturas, cenas mais lentas, seqüências animadas, seqüências reais, tudo pontuado por depoimentos de pessoas mal-amadas nada fictícias. E o relacionamento se transforma numa espécie de videoinstalação cibernética. Um filme de espírito independente, um retrato simpático, muitas vezes divertido e afetuoso dos amores expressos, à maneira dos filmes de Wong Kar-Wai para a era da Internet e que demonstra, em sua curta duração, a dificuldade de se estabelecer um contato mais tradicional com as pessoas numa era abundante de mensagens eletrônicas e hipertextos, que, no entanto, nem sempre comunicam ou aproximam os indivíduos como muitos acreditam.

Num espírito de guerrilha, o filme foi distribuído de maneira pioneira pela Internet e, para quem se interessar, a sua última versão, de 72 minutos, pode ser vista integralmente no YouTube:

quinta-feira, dezembro 06, 2007

No Vale das Sombras

(In the Valley of Elah, EUA, 2007)



E lá estava eu à noite, na madrugada à deriva pelos canais televisivos, a rever na Record o glorioso Crash – No Limite (2005), de Paul Haggis. E, pior, gostando, hehehe. Isso até a cena do tiro de festim do comerciante persa no chaveiro latino abraçado à filha. Aí o filme deixa mais claro suas intenções e limitações, não fazendo mais questão de mascarar a circularidade de seu roteiro esquemático, escrito por Haggis justamente com o intuito de fazer prevalecer no rosto dos espectadores aquele espanto manipulado de “Ó! Então era isso mesmo!”. O que lhe valeu o Oscar de melhor filme na época, para espanto ainda maior de Jack Nicholson e de muitos blogueiros e críticos indignados mundo afora! Aqui, neste segundo trabalho de Haggis na direção, as coisas são um pouco menos óbvias, embora não tão sutis, como a referência explícita à narrativa bíblica de Davi e Golias (evocada no título original), na história de um policial aposentado do Exército e ex-combatente do Vietnã (Tommy Lee Jones), metódico e patriota, lutando para saber do paradeiro do filho, que voltou do Iraque de licença sem que o pai soubesse e que desapareceu após uma noite de folga do quartel. Para a tristeza dele e da mãe (Susan Sarandon), o rapaz é encontrado morto e esquartejado numa área cuja jurisdição é disputada tanto pela polícia, quanto pelo exército. Com a ajuda um tanto relutante da detetive da polícia local, Emily Sanders (Charlize Theron), ele vai pessoalmente até a cena do crime, esbarrando nos superiores do quartel e da polícia, para tentar descobrir os motivos e os responsáveis pelo que aconteceu com o garoto. Em paralelo, conduz ele mesmo a sua investigação particular, tendo como pista uma gravação de vídeo encontrada no celular do filho, com imagens e fotografias deterioradas e uma mensagem de voz com um pedido de socorro enviado ao pai pouco antes do seu desaparecimento, algo que o assombra profundamente. Embora importante e bem conduzida, a investigação, como no panfletário Redacted (2007), de Brian De Palma, é mais um pretexto para discutir os abusos dos militares americanos, em geral muito jovens e despreparados, sobre a população civil na atual ocupação militar do Iraque, além das seqüelas psicológicas deixadas nos recrutas e, principalmente, nos seus familiares. Um filme muito melancólico, carregado pela serena interpretação de Jones e beneficiado pelo fato de Haggis, ainda que não seja um triunfo como diretor, nunca abusar do sentimentalismo, sendo bastante comedido até no uso da trilha incidental, algo aprendido, creio eu, com Clint Eastwood, para quem roteirizou o oscarizado Menina de Ouro e o excepcional Cartas de Iwo Jima.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

A Coragem de Amar

(Le Courage D’Aimer, França, 2005)



Os Amores Parisienses de Claude Lelouch. Ou seja, assumidamente cafona do início ao fim, com alguns toques “esotéricos” e cenários e figurinos novamente remetendo àquele jeitão de novelinha das oito, padrão "Globo" de qualidade. E, ao contrário do filme de Alain Resnais, elegantemente conduzido por canções tradicionais que pontuam a trama, aqui bregas canções românticas, com forte sotaque italianado, invadem sem pudor a trama deste filme coral, em que várias estórias se entrecruzam versando sobre casais em constante desacerto amoroso, pra variar. Uma delas, e a mais emblemática, trata de um cantor italiano que se apresentava nas ruas e bares de Paris com uma jovem e promissora cantante, antes praticante de furtos em butiques, e que um dia é descoberta, levada ao mainstream, abandonando o seu mentor e companheiro, deixando-o desolado. Até que este conhece uma garçonete e os dois partem para a Itália, onde ele refaz a sua carreira, vida amorosa e passa a ter mais sucesso e prestígio que sua antiga companheira. Essa garçonete tem uma irmã gêmea idêntica que trabalha num castelo recém-comprado por um milionário empresário do ramo de pizzarias. O milionário "adquire" não só o castelo, mas também sua antiga proprietária, uma atriz, casando-se com ela e convivendo com suas constantes infidelidades, dentro e fora do palco, quando Lelouch arrisca alguns exercícios de metalinguagem até que interessantes, especialmente ao assumir o papel de um diretor obsessivo que filma a estória dos dois cantores, obrigando-os a cada dia a reviver o seu doloroso relacionamento, agora para ciúmes da ex-garçonete esposa do cantor. Mas o que prevalece mesmo no final das contas são aquelas canções que insistem em invadir a(s) estória(s) e grudar na cabeça do espectador. Parece que, para alguns franceses, amar e ser amado é sempre um saco ou algo eivado de breguice, embora as possibilidades para isso estejam ao alcance de qualquer um, fruto do simples acaso, em cada esquina de Paris ou às margens do rio Sena ou na saída de alguma estação de metrô ou até mesmo em algum luxuoso castelo à venda nas proximidades. Tá bom...

terça-feira, dezembro 04, 2007

A Vida dos Outros

(Das Leben der Anderen, Deutschland, 2006)



Um ótimo filme... para um filme alemão. Ou seja, quadradão e convencional do início ao fim, talvez refletindo um pouco do cotidiano excessivamente regular na sombria Alemanha Oriental (“die DDR”), anos antes da queda do Muro de Berlim, um país cuja população era mantida sob estreita vigilância pela temida Stasi, uma das maiores polícias secretas do mundo, com espiões e informantes em toda a parte, muito empenhados em fornecer ao governo comuna informações detalhadíssimas do comportamento de cidadãos considerados suspeitos, ou melhor, simpatizantes do “decadente e burguês” modo de vida ocidental. Um os espiões, o rígido capitão Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) se encarrega de vigiar um dramaturgo de Berlim, Georg Dreyman (Sebastian Koch), que, apesar dos exemplares serviços prestados à pátria comunista, com peças que inclusive exaltam o regime dos comedores de criancinhas, faz sucesso também do outro lado do muro, o que evidentemente gera suspeitas de traição. Aos poucos, porém, em sua obstinada vigilância por meio de escutas, telefones grampeados e gravações, o solitário Gerd vai se envolvendo mais e mais com o cotidiano agitado de Georg e, sem motivo aparente, passa a omitir em seus relatórios diários detalhes do comportamento do dramaturgo considerados comprometedores, especialmente quando este decide colaborar com uma publicação ocidental, num artigo versando sobre adulterações no número de suicídios no regime totalitário.

Envolvente em seus detalhes, minucioso na reconstituição do trabalho pra lá de voyeurístico (ou paranóico mesmo) dos agentes, apesar da mudança de lado um tanto inverossímil para um duro carrasco voluntário da Stasi, o filme, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro deste ano, com eficaz, embora impessoal, direção do debutante em longas Florian Henckel von Donnersmarck, é conduzido sobretudo pela excelente interpretação do já falecido Ulrich Mühe como o oficial pleno de ambigüidades, mas cujo modo discreto de agir prevalece até o final comovente, mas contido, que evita o drama rasgado: “Es ist für mich” (“É para mim”). Sehr gut!

segunda-feira, dezembro 03, 2007

A Lenda de Beowulf

(Beowulf, EUA, 2007)



Exuberante animação em 3-D a cargo de um especialista em fantasias “virtuais”, Robert Zemeckis (De Volta para o Futuro, Uma Cilada para Roger Rabbit, Forrest Gump, O Expresso Polar), que conta a saga do mitológico herói do título, o nórdico guerreiro Beowulf (Ray Winstone). Um homem um tanto egocêntrico e cheio de feitos a narrar que chega a Dinamarca governada pelo rei Hrothgar (Anthony Hopkins) para enfrentar o monstro Grendel (Crispin Glover), que, após uma celebração regada a vinho e “hidromel”, despertado, massacra os súditos no salão de festas real. Porém, a morte de Grendel nas mãos de Beowulf provoca a fúria da mãe da criatura (Angelina Jolie), que se vinga de forma sangrenta, obrigando o herói a também combatê-la. Mas, dessa vez, mais do que um outro monstro, Beowulf terá que lutar contra seus próprios instintos e impulsos humanos, demasiadamente humanos, se desejar prevalecer agora como o novo rei “virtuoso” da Dinamarca, conforme as canções entoadas a seu respeito. Mais do que o impressionante visual, melhor apreciado em salas de projeção 3-D (para mim, tanto faz, já que só enxergo razoavelmente bem com um dos olhos!), impressiona também o roteiro minucioso de Neil Gaiman e Roger Avary, fiel ao espírito da epopéia anônima medieval, apesar de algumas mudanças na estória original, mas com alta dose de violência, linguagem séria, cheia de arcaísmos, recitativos e alguma nudez no todo. Além disso, ótimos atores como Hopkins, Winstone, John Malkovich, Robin Wright-Penn emprestam muito mais charme e veracidade aos personagens virtuais que os atores “reais” que atuam mais como bonecos emborrachados em 300 ou Eragon, por exemplo.