sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Antes de Partir

(The Bucket List, EUA, 2007)



Um velho sábio, outro nem tanto. Um acumulou fortuna e inimizades (o diabólico Jack Nicholson). O outro (o sempre sábio Morgan Freeman) acumulou sonhos que foi sendo obrigado a deixar para trás ao longo da vida, para cuidar da família e dos filhos. Em comum, ambos sofrem de câncer terminal e, por isso, dividem o mesmo quarto no hospital de política igualitária do filantrópico e solitário milionário. Apesar das diferenças, viram amigos e, juntos, decidem realizar seus últimos sonhos em comum, às expensas do milionário, obviamente, antes de baterem as botas. O que inclui, na lista que elaboram, rir até chorar, conhecer as pirâmides do Egito, o Taj Mahal e as muralhas da China, pilotar carros vintage em alta velocidade numa pista de corrida, pular de pára-quedas, fazer um safári na África, essas coisas. Um safári onde não se atire nos bichinhos, está claro. Afinal, os tempos mudaram e Jack Nicholson sempre foi um liberal, apesar da aparência demoníaca. E, com tanto a fazer em tão pouco tempo, Morgan Freeman ainda prefere ficar no quarto de hotel em Hong Kong vendo Jeopardy na TV ou até voltar logo para a família, vejam só.

Mesmo com um tom predominante mais melancólico, obviamente por causa do tema, filme que diverte, instrui e deixa-se ver graças ao formidável carisma da dupla, apesar da direção pouco criativa de Rob Reiner (de clássicos como A Princesa Prometida, This is Spinal Tap, Harry e Sally), de algumas costumeiras piadas sobre a velhice e da sempre solene e sábia narração de Morgan Freeman pontuando o filme. E a imagem final, no Everest, é até bastante bonita e vale o percurso.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Na Natureza Selvagem

(Into the Wild, EUA, 2007)



Mais maduro como cineasta e retomando, em imagens deslumbrantes e poéticas, temas que lhe são bastante caros, como o sujeito rebelde, desgarrado da família e do mundo, visto em seu filme de estréia como diretor, Unidos pelo Sangue (1991), ou pais tendo que lidar com a dolorosa perda do filho, como em Acerto Final (1995) e A Promessa (2001), Sean Penn, com a ajuda de um ótimo elenco e baseando-se em livro-reportagem de Jon Krakauer (autor de Sobre Montanhas e Homens e do horripilante No Ar Rarefeito), dirige com muita segurança um relato emocionado de Christopher McCandles (Emile Hirsh), jovem americano de família rica, recém-graduado com notas altas na universidade, que larga tudo e, sem identidade, dinheiro ou motivo aparente, adota o nome de Alex Supertramp e parte com seu carro velho rumo ao Alasca. Seus complicados pais (William Hurt e Marcia Gay-Hardem) nunca mais terão notícias dele vivo, assim como a sua irmã mais nova (Jena Malone), cuja perplexa narração pontua o filme. Essa sua jornada espiritual combina o idealismo do Walden de Thoreau com o espírito humanista de autores aventureiros, como Jack London, ou intimistas, como Tolstói. Em sucessivos flashbacks, Alex, por onde passa, deixa impressões profundas nas pessoas que conhece, como um casal de hippies que já não é mais o mesmo e um senhor viúvo e solitário (Hal Holbrook, excelente), em belo momento do filme, até o seu isolamento no inóspito Alasca, onde, como um personagem de algum filme de Werner Herzog, é vencido pela natureza que tanto idealizava e lá definha. Um olhar épico sobre paisagens bastante conhecidas da vastidão da América profunda, sobre o eterno desejo de desbravá-las e de se perder nelas, mas também intimista, de um jovem obstinado, generoso, de ideais inconformistas que lhe escapam no confronto sempre desproporcional com a natureza ou com outros indivíduos. O que havia de idealismo libertário na América, representado pela jornada tardia do enigmático Alex ou Christopher, reafirma Penn no final com certa melancolia, parece ter ficado naquele ônibus "mágico", perdido em algum lugar no meio do Alasca.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Senhores do Crime

(Eastern Promises, Reino Unido/Canadá/EUA, 2007)



Em vez de falarmos da vida alheia ou sobre Vestida para Casar, mais um tolo representante de um dos mais perversos gêneros cinematográficos em voga atualmente, a comedinha romântica fofa (afinal, embora não comentem, nada mais assustador para muitos homens que uma mulher vestida de noiva, especialmente se um desses homens for o noivo...), retomemos as perversões corpóreas cada vez mais concretas de David Cronenberg (Marcas da Violência, 2005), neste seu formidável Eastern Promises. Apesar de diluídas num formato mais convencional, na aparência um drama policial dos mais eficientes e enxutos sobre mafiosos russos em Londres, envolvendo contrabando de drogas, mercadorias e, principalmente, tráfico de adolescentes do Leste Europeu, suas obsessões com o corpo permanecem desde a primeira e perturbadora cena, em que uma garganta é lacerada profundamente por uma navalha. Afinal, a superfície epidérmica rasgada, que dá vazão ao jorro sanguinolento sem meios tons é o que importa desde sempre no mundo distópico de Cronenberg, em que tipos aparentemente ameaçadores, como o motorista Nikolai (Viggo Mortensen), tatuam seu histórico de violência sobre a própria pele. E mais: a pele marcada, o corpo jogado num rio, o DNA de um recém-nascido, todos “contam” histórias, assim como a jovem imigrante que entra sangrando numa farmácia, às vésperas do Natal. Um rasgo na garganta por onde se morre, uma abertura por onde se nasce. Entre a morte e a vida, muito sangue. A adolescente agonizante, de apenas 14 anos, está grávida e morre ao dar a luz no hospital onde trabalha a parteira Anna (Naomi Watts). O bebê sobrevive por pouco, e a jovem, sem qualquer identidade, deixa um diário em russo. Anna, querendo localizar um nome ou pista que a leve a algum parente da garota, a quem possa entregar a desamparada criança, mesmo filha de russos, é incapaz de decifrar a escrita em cirílico da menina. No entanto, dentro do diário encontra um cartão que a leva ao restaurante russo de Semyon (Armin Mueller-Stahl), um velho simpático que se dispõe a traduzir o conteúdo o diário, mesmo alertada pelo tio, um ex-funcionário da KGB (o veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski) sobre os perigos de se mexer nas coisas de um morto. Semyon é simpático só na aparência, pois trata-se de um chefão local da Vory v Zakone ("ladrões dentro da lei"), a sinistra máfia russa. Com sua fala suave, modula ameaças veladas, enquanto prepara um típico borscht. Entre eles, seu violento filho Kirill (Vincent Cassel) e o motorista da família e responsável por limpar todo o trabalho sujo do bando, Nikolai, um tipo bastante reservado, embora ambíguo, e eficiente naquilo que faz e, por isso, prestes a ascender dentro da hierarquia rígida da organização. Ou seja, Anna mete-se, sem se dar conta a princípio, numa enrascada barra-pesada, pondo em risco a sua vida, a de sua família e a do bebê.

Para falar do Mal que se infiltra entre os homens, Cronenberg não vê mais a necessidade de recorrer monstros gosmentos, patologias sexuais, mutantes ou indivíduos deformados, como em A Mosca, Gêmeos, Mórbida Semelhança ou Mistérios e Paixões. Ele não mudou, porém. O mundo é que ficou mais cruel, mais ameaçador em sua indiferente opacidade, tal qual a dos olhos inquietantes de Semyon ou das sombrias ruas de uma Londres bem distante de seus badalados pontos turísticos, um lugar onde nunca faz sol, nas palavras melancólicas de Semyon. E, afirma Cronenberg por meio de límpidas imagens, sobreviver a este mundo sufocante de ocultas ameaças é que se torna o grande desafio tanto para o frágil bebê, que vem ao mundo coberto apenas de placenta, mal conseguindo respirar, quanto para o forte Nikolai, que certa feita terá que se defender deste mesmo mundo e de seus seres insanamente violentos, de suas agressões, completamente nu e desamparado, como na já emblemática e bastante comentada cena da luta na sauna, um embate puramente físico contra dois sangüinários agressores chechenos, ponto alto deste belo filme, que, apesar do final esperançoso, é bastante incômodo, amargo e defendido com garra visceral pelo ótimo elenco.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Não é fraco, não, friendo!



Onde os Fracos Não Têm Vez: Oscar de filme, diretor(es), ator coadjuvante (Javier Bardem) e roteiro (brilhantemente) adaptado. Mais do que merecidas foram também as premiações para Daniel "I´ve abandoned my child" Day-Lewis (Sangue Negro), para a bela Marion Cotillard (Piaf) e Tilda Swinton, surpreendendo como coadjuvante em Conduta de Risco. Mais do que esperada a premiação de melhor roteiro original para Juno. E a única também, thank God (ou Diablo!). Outros prêmios justos: melhor filme de animação para Ratatouille, fotografia para Sangue Negro, trilha sonora para Desejo e Reparação, direção de arte para Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, figurino para Elizabeth: A Era de Ouro e canção para Once, que no momento dos agradecimentos, feito em duas partes, teve um discurso emocionado de seus dois intérpretes, compositores e protagonistas. Já O Ultimato Bourne consagrou-se nos prêmios técnicos (Edição de Som, Mixagem e Edição). Pena que Transformers, o melhor blockbuster de 2007, não tenha levado a estatueta de efeitos visuais, que ficou para o sem-graça A Bússola de Ouro. E resta aguardar para saber se The Counterfeiters, o ganhador da estatueta de melhor filme estrangeiro da Áustria, terra de grandes diretores do passado como Billy Wilder, Fred Zinnemann, Fritz Lang e Otto Preminger, é tão bom assim para ter desbancado os filmes de Wajda e Nikita Mikhalkov. De resto, uma cerimônia correta, quase sem surpresas e autocongratulatória do início ao fim, com algumas boas, outras nem tanto alfinetadas a cargo de seu politizado apresentador Jon Stewart, que contou ainda com a nobre presença na platéia de Cormac McCarthy, autor de No Country For Old Men, e que demonstrou que há ainda muito lugar para os velhinhos. Aos menos no cinema. Que o diga Robert Boyle, diretor de arte e designer de produção de vários filmes de Hitchcock e homenageado da noite aos 98 anos. E palmas para Lewis, Bardem, McCarthy, para o corajoso final enigmático e sem concessões do livro e do filme e, principalmente, para os irmãos Coen, que três vezes subiram no palco do Kodak Theatre nesta madrugada.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Persépolis

(Persepolis, França/Irã/EUA, 2007)



Baseando-se em quadrinhos de sua autoria, a incrível história da diretora Marjane Satrapi (que aqui divide a direção com Vincent Paronnaud), ou Marji, uma menina adorável e imaginativa, filha de pais liberais de Teerã. Fã de Bruce Lee, com o desejo de depilar sozinha as suas pernas e de ser a última profetisa das galáxias, além de “adepta” do nascente movimento punk, cresce no cosmopolita Irã do final dos anos 70, primeiro dominado pelo regime ditatorial do Xá Reza Pahlevi, cheio de restrições, mas já nos estertores, e depois pelos fundamentalistas religiosos, que, baseando-se na lei islâmica, isolam o país e impõem ainda mais restrições, sobretudo de comportamento e que atingem as mulheres, principalmente. Adolescente, com a escalada violenta da guerra Irã-Iraque, seus pais a mandam para a Europa, onde, solitária em Viena, se sentirá como um peixe fora d’água, mesmo tentando estudar e entender os hábitos e comportamentos da cultura ocidental. Evita, por exemplo, dizer que é do Irã. Com o fim da guerra, de volta a Teerã, percebe que as coisas lá pouco mudaram no país sob o comando dos aiatolás, apesar de rever seus pais e sua amada e independente avó, em cujas conversas residem algum dos melhores momentos do filme.

Ora bem-humorada, ora melancólica, mas sempre política e com um belo visual, uma animação de traços simples, fiel ao traço original dos quadrinhos, mas nunca simplórios e cheios de expressividade na caracterização de seus ricos e reais personagens, que começa em puro preto e branco e, à medida que os infortúnios, familiares, políticos, amorosos, matrimoniais, vão se somando à vida de Marji, adquire tons mais acinzentados, soturnos, com raros momentos em cores, que não assim tão coloridos ou alegres. Mas tudo bastante cativante, graças sobretudo ao carisma de sua “animada” protagonista, que, esperta, sempre dá um jeito de burlar as proibições dos aiatolás ou de sobreviver em meio às estranhezas de seus colegas europeus. Delicioso do início ao fim.

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Os Indomáveis

(3:10 to Yuma, EUA, 2007)



Não um western apocalíptico ou modernizado, como Onde os Fracos Não Têm Vez. Também não um western crepuscular, que melancolicamente lamenta o fim do gênero e de seus mitos, como O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford. Apenas um western tradicional. E dos bons. Primeiro, porque é uma refilmagem (com algumas modificações na estória, originalmente escrita por Elmore Leonard) de um belo clássico de Delmer Daves, Galante e Sanguinário (1957), sem ser excessivamente reverente ao original, um cruzamento, carregando ainda mais na ambigüidade moral de seu renegado protagonista, de Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann, com O Preço de um Homem (1953), de Anthony Mann. Depois, porque o diretor dessa nova empreitada, o versátil James Mangold (Johnny e June, Identidade, Copland), capricha nas cenas de ação, nos tiroteios, como se calcados dos westerns que se faziam nos anos 50, e, principalmente, nos embates verbais entre seus dois antagonistas, os tais “indomáveis” do genérico título nacional, muito bem interpretados por Christian Bale e, sobretudo, pelo excelente Russell Crowe. Estão aqui também presentes as cavalgadas diante do Monument Valley e o assalto à diligência cheia de dinheiro que cruza as áridas pradarias do deserto. Assalto praticado pelo bando liderado pelo fora-da-lei Ben Wade (Crowe) e testemunhado por um honesto criador de gados, Dan Evans (Bale) e seus filhos. Mais tarde, quando o bando se separa, Wade, como sedutor compulsivo que é, é capturado num daqueles momentos de “fraqueza da carne”. Endividado, malvisto pela mulher (Gretchen Mol) e pelo filho mais velho (Logan Lerman) e correndo o risco de perder a propriedade, o pobre rancheiro, que teve uma perna amputada quando soldado da União durante a guerra civil, propõe participar com um pequeno grupo da arriscada missão de escoltar o prisioneiro até a cidade mais próxima, onde o trem no horário do título original o levará à prisão de Yuma. Tarefa dificultada pela incessante perseguição dos comparsas de Wade, agora liderados pelo psicótico Charlie Prince (Ben Foster), alguns índios apaches, outros tantos milicianos rudes e brutais no meio do caminho, além da astúcia verbal do sempre sedutor, mas violento Wade, lembrando o Robert Ryan, de O Preço de um Homem, tentando convencer Dan e os outros a soltá-lo ou dando sempre um jeito de manipular todo o mundo, antes de atirar com a sua exímia pontaria. Pleno de tiroteios, como no confronto final em Contention, onde enfrentam uma cidade inteira, e diálogos afiados, um filme que honra e celebra o gênero, levado pela memorável trilha sonora de Marco Beltrami, com motivos similares à banda sonora de um antigo bang-bang, e pela segura direção de Mangold, além do ótimo elenco.

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

XXY

(XXY, Argentina/Espanha/França, 2007)



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
(Luís Vaz de Camões)

Hermafrodita, Alex (Inés Efron) foi criada como menina pelos pais, que, pouco depois de seu nascimento, para protegê-la, mudam-se da Argentina para uma casa afastada no litoral do Uruguai, onde o pai, Kraken (Ricardo Darín), trabalha como biólogo marinho. Adolescente, Alex toma corticóides para inibir o aparecimento de atributos masculinos, como barba ou o engrossamento da voz. Isso não impede que seja vista como curiosidade “freak” pelos locais, tipos rudes e às vezes violentos. Na praia, seus pais, ainda não decididos a operá-la de vez, recebem a visita de um casal de amigos de Buenos Aires, acompanhado de seu feioso filho de 16 anos, Álvaro (Martín Piroyansky). O pai, Ramiro (German Palacios), é um cirurgião estético renomado e especializado em corrigir deformações físicas. Ou, melhor dizendo, em “normalizar” as pessoas, e aceitou o convite vendo potencial em Alex como um interessante caso clínico. Ela (ou ele), no entanto, refuta em continuar tomando os medicamentos e avança sexualmente sobre o tímido Álvaro, de modo bastante agressivo, masculinizado até. Basta o desejo surgir, ainda mais nessa idade, que os conflitos afloram. Ela entra em conflito com o corpo e com a própria sexualidade, deixando também seu pai, que sempre a viu como uma “criatura” perfeita, tendo-a criada como tal, tão ou mais confuso que ela na hora de decidir se a opera ou não.

Enxuto drama argentino de texturas naturalistas, como bem demonstram suas primeiras imagens captadas no fundo do mar, enfocando evoluções de criaturas marinhas (Alex seria também parte monstro?), além do nome do pai biólogo, “Kraken” (como o polvo gigante de Piratas do Caribe, hehehe), acostumado a classificar espécies aquáticas de acordo com o sexo, cor, etc., conduzido com sobriedade por Lucía Puenzo, filha do cineasta Luiz Puenzo (de A História Oficial), que, epidérmico, evita os malabarismos formais e o moralismo ou o psicologismo rasteiro, além das boas interpretações da andrógina Efron, muito bem como Alex, nunca fragilizando-se ou masculinizando-se em excesso, e do sempre confiável Ricardo Darín (Nove Rainhas, O Filho da Noiva, O Clube da Lua, A Aura), ainda que os outros personagens femininos da trama não sejam tão bem desenvolvidos. Mas não importa, pois, no geral, o filme é bom.

terça-feira, fevereiro 19, 2008

A Morte de George W. Bush

(Death of a President, Reino Unido, 2006)



Um mockumentary, ou seja, um documentário de mentirinha, que forja, por meio de depoimentos fictícios e imagens reais mescladas a reconstituições bastante convincentes, a “morte” do presidente George W. Bush durante visita da comitiva presidencial a Chicago, onde é alvo de protestos de milhares de manifestantes e de um exímio atirador, que consegue romper a barreira do forte esquema de segurança e atingi-lo com dois disparos. Apesar do tema explosivo, beirando o sensacionalismo, que fez o filme ser banido dos cinemas americanos, o tom é bastante respeitoso ao “falecido” e até então odiado presidente americano, intercalando depoimentos “emocionados” de um suposto agente do Serviço Secreto, que reconhece ter falhado na missão e que o acompanhou até o hospital, e de uma articulada assessora que escrevia os discursos de Bush. Também as “investigações” são mostradas de maneira sóbria, com “especialistas” convincentemente refutando as conclusões oficiais, que, como não poderia deixar de ser, terminam apontando para um cidadão americano de origem árabe e de nome Jamal, que estaria a serviço da Síria, embora fosse só um inocente funcionário do hotel onde Bush fez o discurso. Até em seu enterro, Bush ganha honras de “grande estadista”, com direito a pomposo discurso do recém-empossado Dick Chenney. É capaz até que muitos se emocionem com a tal seqüência, o que é um tiro no pé nas intenções do realizador britânico Gabriel Range. Ou seja, o que poderia ser uma farsa bem-humorada, acaba tornando-se quase um trabalho chapa-branca sobre um hipotético evento, já que o filme não tem humor algum (e se tem, é bastante circunspecto), ainda que o diretor competentemente se esforce para inserir aqui e ali alguma crítica verossímil à política belicista de Bush e seus ataques às liberdades de civis americanos por meio do infame Ato Patriótico. Mas fica só na superfície, apesar de bem montado, bem fotografado, bem encenado, etc. Além disso, falar mal de Bush hoje em dia é como chutar cachorro morto. Ou melhor, “pato manco” (lame duck), na gíria dos americanos.

There Will Be Milkshake



"DRRAAAIIIINAGE! Drainage, Eli, you boy. Drained dry."

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Sangue Negro

(There Will Be Blood, EUA, 2007)



"GOD IS A SUPERSTITION!"

Em algum lugar do semi-árido meio oeste americano, haverá petróleo, haverá conflitos e, conforme o título original, haverá sangue. É o que descobrirá o então modesto minerador Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis). Em 1898, numa magnífica seqüência sem qualquer diálogo, cavoucando sozinho uma mina de prata, descobre nela petróleo. Muito petróleo. Não sem antes quebrar a perna e ter que penosamente se erguer sozinho até a superfície. Emerge das sombras e torna-se então um próspero prospector, perfurando e montando torres de petróleo em várias propriedades que arrenda de fazendeiros pelos EUA. Ao lado de seu filho adotivo, H.W. Plainview, que “usa” nas mesas de negociação para posar de homem de família, conduzindo um negócio que diz ser familiar e utilizando a conhecida retórica persuasiva de um vendedor, indicado por um morador, Paul Sunday (Paul Dano), chega à pequena e empobrecida localidade de Little Boston. Em sua ida ao vilarejo, em 1908, numa panorâmica emblemática, síntese do que virá, a câmera afasta-se dos trilhos da ferrovia para mostrar Daniel se dirigindo ao local num pequeno carro, na companhia apenas do filho. Interessa-lhe agora o petróleo, que move o carro, que transporta apenas duas pessoas, e seus interesses, contrapondo-se ao interesse coletivo representado pela ferrovia e pelo trem, que transporta muito mais gente. Seja pelas torres de madeira que ergue, seja pelas lagoas de ouro negro que faz surgir no meio do deserto, seja pelos oleodutos subterrâneos que cava em direção ao mar, de alguma forma sua presença individualista se impõe na comunidade e na paisagem inóspita de Little Boston, onde inevitavelmente entra em conflito com o pastor da congregação local e irmão gêmeo de Paul, Eli Sunday (também Paul Dano), da Igreja da Terceira Revelação. Um rival messiânico, ambicioso, em palavra, à altura da retórica de Plainview, e que se considera ungido por Deus e que quer trazê-lo para a igreja, para, sobretudo, receber uma generosa doação prometida por Plainview desde que este se instalou na área. Também insiste em benzer os poços dele, interferindo dia a dia nos negócios. Daniel, porém, criatura de natureza subterrânea, como um bicho dostoiévskiano, odeia todo mundo, especialmente Eli. E esse seu ódio, até então represado por trás de uma pretensa moral de generosidade, explode como o gás que, em certo momento, jorra sem controle do poço e atinge seu filho, deixando-o surdo. Também odeia os magnatas das grandes corporações petrolíferas que querem comprar por milionárias quantias as propriedades onde instalou praticamente sozinho as suas torres e montou o aparato de perfuração e as instalações, fazendo todo o trabalho sujo, sujando ele mesmo as mãos de graxa e até de sangue, quando via algum trabalhador seu morrer ao ser atingido por uma perfuratriz. E prefere ele mesmo cuidar da construção do oleoduto até o mar a ter que pagar o frete para a companhia ferroviária transportar o petróleo, mesmo que, para isso, tenha que se juntar de vez à congregação. Em certo momento, sem conseguir mais se comunicar com ele, bruscamente manda o filho embora e descobre ter sido enganado por um suposto irmão seu. Mais e mais só, constrói e solidifica o seu império subterrâneo, não sem alguns assassinatos cometidos de próprio punho, e nele se refugia e se afasta do mundo, e até de seu filho, agora crescido e casado com a irmã de Eli. Na sua mansão milionária e vazia, faz valer a profecia do título, no desfecho assombroso (“a teoria do milkshake”). Ao cortar laços com a humanidade, Daniel perde também o pouco que restava dela em si, e tomba como a torre que arde em chamas em outro momento espetacular do filme.

Este impressionante e muito ambicioso (seus detratores preferirão dizer “pretensioso”) épico de Paul Thomas Anderson (Boogie Nights, Magnólia), da estirpe de Cidadão Kane (1941), pela utilização da profundidade de campo ao narrar a história de um magnata que conquista tudo, mas que perde o que lhe é essencial, e Giant – Assim Caminha a Humanidade (1956), pelo petróleo, pelas imagens do ouro negro jorrando e de grandes tomadas panorâmicas do deserto, e que se estende por três décadas, levado pela extraordinária trilha sonora de Jonny Greenwood, que utiliza em seus acordes desde os barulhos da perfuração até excertos do Concerto para Violino e Orquestra de Johannes Brahms, ganha ainda mais gravidade pela interpretação magnífica, absoluta, única de Daniel Day-Lewis, que, como o maior ator do mundo que é atualmente, domina a tela, conferindo espessura a um magnata individualista radical, tal como o Charles Foster Kane de Orson Welles. Porém, seu Plainview é um visionário sombrio, desprezível, irascível e muito mais paranóico, que prefere erguer todo um mundo a seu redor e deixá-lo funcionar sozinho, mecanicamente às custas do maquinário que monta e que pode esmagá-lo a qualquer momento, que dorme no chão duro e que, pouco a pouco, coloca no seu rosto, sem nunca cair na caricatura, uma máscara de ódio contra o mundo que o deforma de tal maneira e da qual não mais consegue se livrar. É só reparar na cena do batismo na congregação, onde grita reluntatemente que é "um pecador" e que "abandonou o filho". E, ao contrário de Giant, onde o petróleo jorrava com gozo, o óleo brotando da terra aqui só lhe acarreta infortúnios, desde a perna quebrada no começo à surdez do filho, mesmo que lhe traga muita fortuna. Mas não importa tanto o dinheiro para Plainview. Importa tê-lo apenas para comprar a sua necessária solidão, já que não crê em salvação, em redenção, em nada ou ninguém. E assim caminha a sua trágica desumanidade, contra tudo e contra todos, inclusive contra seu pobre filho.

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Alfred 2007: Minha Primeira Participação


Já que todo mundo adora uma listinha, abaixo, os meus indispensáveis indicados para a primeira fase da premiação anual da Liga dos Blogues Cinematográficos:

filme
1 Zodíaco
2 Império dos Sonhos
3 Tropa de Elite
4 Cartas de Iwo Jima
5 A Rainha

diretor
1 David Fincher, Zodíaco
2 David Lynch, Império dos Sonhos
3 William Friedkin, Possuídos
4 Pascale Ferran, Lady Chatterley
5 Alain Resnais, Medos Privados em Lugares Públicos

ator
1 Mark Ruffallo, Zodíaco
2 Wagner Moura, Tropa de Elite
3 Joaquin Phoenix, Os Donos da Noite
4 Ulrich Mühe, A Vida dos Outros
5 Casey Affleck, O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford

atriz
1 Laura Dern, Império dos Sonhos
2 Helen Mirren, A Rainha
3 Ashley Judd, Possuídos
4 Nikki Blonsky, Hairspray
5 Marina Hands, Lady Chatterley

ator coadjuvante
1 Robert Downey Jr., Zodíaco
2 John Travolta, Hairspray
3 Chris Cooper, Quebra de Confiança
4 Paul Rudd, Ligeiramente Grávidos
5 Robert De Niro, Stardust – O Mistério da Estrela

atriz coadjuvante
1 Grace Zabriskie, Império dos Sonhos
2 Cate Blanchett, Notas sobre um Escândalo
3 Tilda Swinton, Conduta de Risco
4 Queen Latifah, Hairspray
5 Susan Sarandon, No Vale das Sombras

elenco
1 Hairspray
2 Zodíaco
3 Medos Privados em Lugares Públicos
4 A Leste de Bucareste
5 Leões e Cordeiros

cena do ano
1 O conceito de estratégia, Tropa de Elite
2 Todo mundo dançando na TV ao som de You Can´t Stop the Beat, Hairspray
3 O crítico saboreando Ratatouille, Ratatouille
4 A entrevista no estúdio, A Leste de Bucareste
5 Os amantes desnudos correndo na chuva, Lady Chatterley

roteiro original
1 Ratatouille
2 Conduta de Risco
3 A Rainha
4 Sombras de Goya
5 Cartas de Iwo Jima

roteiro adaptado
1 Zodíaco
2 Tropa de Elite
3 Medos Privados em Lugares Públicos
4 Possuídos
5 Lady Chatterley

filme de estréia
1 A Leste de Bucareste
2 A Vida dos Outros
3 Conduta de Risco
4 Ponte Para Terabítia
5 Não Por Acaso

filme brasileiro
1 Tropa de Elite
2 Santiago
3 Não Por Acaso
4 O Cheiro do Ralo
5 Mutum

fotografia
1 O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford
2 Zodíaco
3 Medos Privados em Lugares Públicos
4 Lady Chatterley
5 Sombras de Goya

montagem
1 Zodíaco
2 Exilados
3 Os Donos da Noite
4 Conduta de Risco
5 O Ultimato Bourne

direção de arte
1 Harry Potter e a Ordem da Fênix
2 O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford
3 Lady Chatterley
4 Sombras de Goya
5 Hairspray

trilha sonora
1 O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford
2 Império dos Sonhos
3 A Conquista da Honra
4 A Rainha
5 Notas Sobre um Escândalo

canção
1 Come So Far (Got so Far to Go), Hairspray
2 That's How You Know, Encantada
3 Le Festin, Ratatouille
4 Pop Goes My Heart, Letra e Música
5 Happy Working Song, Encantada

som
1 Império dos Sonhos
2 Transformers
3 Possuídos
4 A Conquista da Honra
5 Ratatouille

efeitos visuais
1 Transformers
2 O Hospedeiro
3 A Bússola de Ouro
4 Piratas do Caribe: No Fim do Mundo
5 Harry Potter e a Ordem da Fênix

pior filme
1 Baixio das Bestas
2 O Búfalo da Noite
3 Norbit, Uma Comédia de Peso
4 Anjos Exterminadores
5 Angel-A

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Elizabeth: A Era de Ouro

(Elizabeth: The Golden Age, Reino Unido/França/Alemanha, 2007)



Tardio, mas com a mesma pompa, parte do elenco, figurino e circunstância do filme anterior, o diretor bollywoodiano Shekhar Kapur retoma neste drama histórico ainda mais suntuoso a saga da autoproclamada Rainha Virgem da Inglaterra, a poderosa Elizabeth I, rainha protestante, em vias de entrar em conflito com o católico Rei Felipe II da Espanha, que era, no século XVI, o mais poderoso monarca da Europa (e em guerra contra ela) e detentor de uma armada muito superior a de Sua Majestade. “Virgem” queria dizer que ela, embora não inteiramente celibatária, optou por não se casar com qualquer príncipe encantado que havia por aí, da Áustria à Rússia, o que a impedia de deixar um herdeiro legítimo para o trono e, sobretudo, formar fortes alianças políticas com outras potências, abrindo caminho para que conspiradores aliados à Espanha urdissem planos para matá-la e apoiassem a católica Mary Stuart (Samantha Morton), rainha da Escócia e prima de Elizabeth, mantida prisioneira nas terras altas, para sucedê-la no trono britânico. Numa cerimônia na corte, por um diálogo afiado e repleto de conotações sexuais, Elizabeth é apresentada a seu futuro amor não-correspondido na História, o galante e aventureiro Sir Walter Raleigh (Clive Owen), explorador do Novo Mundo que se envolve romanticamente com a dama de corte da rainha, também chamada de Elizabeth (a bonita loirinha Abbie Cornish, de Candy), e também, contra a sua vontade, com urgentes questões de Estado, prestes a entrar em guerra. Detida a conspiração, debelada por fiel ministro Sir Francis Walsinton (Geoffrey Rush), não se consegue deter, porém, o ímpeto fanático com que a armada do rei espanhol avança para invadir as Ilhas Britânicas. Com esplêndida fotografia, procurando sempre colocar a rainha, magnificamente (re)vivida pela bela ruiva Cate Blanchett, no centro do quadro fílmico nas cenas mais cerimoniais, ou mostrando-a bastante vulnerável e humana em contraste com a solidez dos gigantescos arcos góticos de seu palácio, onde é filmada quase sempre sozinha, além dos esmerados figurinos habituais de época e conduzido de maneira até que absorvente e tradicional pelo limitado Kapur, um filme cuja história sai um pouco dos corredores de uma corte sufocante do primeiro filme para abrir-se a momentos de pura aventura, como na batalha naval no final, e com direito antes a discurso de apoio às tropas enunciado pela própria rainha, eloqüentemente montada num cavalo, que, elegante e soberana, nunca se deixa abalar. E será que este ano teremos outra Rainha ganhando Oscar? By Jove, God save the Queen!

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

A Quase Verdade

(La Vérité ou Presque, França, 2006)



Em nada lembrando as produções sobre desacertos afetivos de um grupo de indivíduos de Resnais ou Rohmer, mais uma vulgar comedinha francesa de encontros e desencontros, salpicada com algum drama e muita verborragia, freqüentada por tipinhos blasé bem de vida, mas sempre entediados, daquela maneira intelectualóide insuportavelmente francesa, metidos à besta e um tantinho arrogantes entre si, nesta história dirigida sem muita convicção pelo mediano diretor Sam Karmann, que aqui também interpreta Thomas, e que conta, num fiapo de trama, a ciranda extraconjugal da bela e madura Anne (Karin Viard), casada com Thomas, que se sente atraído por Caroline (Julie Delarme), uma jovem mulher que está grávida de Marc, que é ex-marido de Anne, mas com quem ainda se encontra furtivamente para um affair nas tardes ensolaradas de Lyon. No meio deles, um escritor homossexual (André Dussolier), que está em Lyon para uma palestra a convite de Thomas e que, prestes a finalizar a biografia de uma cantora de jazz dos anos 60, acaba se envolvendo mais do que profissionalmente com Anne e, sobretudo, com Marc. Todos, como bons adultos, tendo a mentira, ou a quase verdade, com grande aliada. Ou seja, nada muito interessante ou inovador, mas assistível, sobretudo pela boa fotografia em CinemaScope, que privilegia belas locações em Lyon, saindo um pouco das obviedades paisagísticas parisienses, coisa rara no gênero, e pelas boas interpretações de Karin Viard (de Um Dia de Rainha, 2001, e Inferno, 2005) e, sobretudo, de André Dussolier (de Medos Privados em Lugares Públicos, 2006), que conseguem conferir um pouco mais de espessura e humanidade aos tipinhos não raro egocêntricos que interpretam. Já François Cluzet (de A Rainha Margot, 1994), repetindo a mesma cara de sonso vista no boboca Quatro Estrelas (2006), continua o bobalhão de sempre.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Cloverfield – Monstro

(Cloverfield, EUA, 2008)



A tremedeira de uma Nova Iorque atacada por uma gigantesca criatura de origem desconhecida vista pela inevitável e desorientadora tremedeira de uma câmera que acompanha quatro sobreviventes pelas entranhas da cidade, que, tomada por militares que tentam enfrentar o monstro, desmorona a cada quarteirão. Antes, uma festa de despedida no apartamento de Rob Hawkins (Michael Stahl-David), que partiria para um novo emprego no Japão, terra de monstros como Godzilla. Durante a festa, seus amigos, pessoas bastante “articuladas” entre 20 e 30 anos, gravam “memoráveis” depoimentos de despedida para a câmera de Hud (T.J. Miller), que será o incessante e obsessivo videomaker de toda a festa e depois da catástrofe. E então segue o ataque, visto de longe, do ponto de vista das pessoas em pânico nas ruas, com apenas um ou outro detalhe do monstro, que se esquiva no meio dos prédios que põe abaixo, aparecendo. Bastante realismo na destruição, vislumbrada a distância pelo único e limitado ponto de vista da câmera amadora de Hud, em imagens tremidas, nauseantes, impressionantes, que remetem em seu aspecto propositalmente bruto e urgente à assombrosa destruição do 11 de Setembro e cujo conjunto compõe no final uma arqueologia desse caos todo. Câmera com suas imagens que é resgatada dos escombros logo no começo pelos soldados e, como em Holocausto Canibal (1979) e A Bruxa de Blair (1999), o que se vê na tela é uma história contada em retrospecto, reafirmando assim o registro obsessivo de um olhar como outro qualquer que nunca se desvia da destruição plena. Por isso, a câmera de Hud, na ânsia de captar tudo, nunca cessa de filmar, mesmo correndo, tropeçando, sendo atacado por monstrinhos no mais completo breu ou cara a cara com o monstro do idiota título nacional, que, por sinal, tem um visual muito bacana.

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet

(Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, EUA, 2007)



Edward Mãos-de-Tesoura cresceu, perdeu a inocência, trocou as tesouras por navalhas afiadíssimas e os coloridos salões de beleza dos limpos e ordenados subúrbios americanos por uma horripilante barbearia na imunda Londres hiperdickensiana do século XIX, com ruas estreitas e ecos de Gotham City. Nesta barbearia na Fleet Street, além de aparar as barbas e as costeletas, trata também de sangrar seus clientes, como bem faziam os barbeiros de antigamente. Porém, sangra-os até demais e, com a ajuda da adorável Ms. Lovett (Helena Bonham Carter), transforma tudo em picadinho, que, graças a esse novo ingrediente, fazem das tortas dela, servidas à freguesia no melhor estilo Titus Andronicus, um grande sucesso na vizinhança. Tudo porque Edward, ou melhor Benjamin Barker, após 15 anos, retorna a Londres para se vingar do juiz (Alan Rickman) que o sentenciou injustamente à prisão na Austrália, raptou a sua filha e destruiu a vida de sua esposa. Com um novo nome, Sweeney Todd (Johnny Depp, ótimo), e em busca de uma nova clientela, parte para uma requintada vingança nos moldes do bom e velho teatro grand guignol de antigamente. Ou seja, com gargantas cortadas, sangue jorrando adoidado num tom mais do que avermelhado, em forte contraste com o cinza dos ambientes escuros de Londres, dedos decepados e pernas amputadas. Antes, canta em inspirados duetos sua vingança não só contra o juiz, mas contra o mundo. Sim, canta, pois barbeiros cantavam desde a ópera de Rossini, O Barbeiro de Sevilha, aos quartetos vocais de barbearia celebrizados no musical O Vendedor de Ilusões, de Meredith Wilson, neste filme que é todo ele também um musical de tons sombrios à maneira expressionista de Tim Burton que, fiel aos seus tipos desajustados de bom coração e baseando-se no espetáculo da Broadway composto por Stephen Sondheim (West Side Story), faz um de seus trabalhos mais deliciosamente macabros e de extraordinário requinte visual e também “visceral”, claro.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Onde os Fracos Não Têm Vez

(No Country for Old Men, EUA, 2007)



THAT is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
- Those dying generations - at their song,
(…)
Caught in that sensual music all neglect

Monuments of unageing intellect.

(William Butler Yeats, in Sailing to Byzantium)

O melhor filme dos irmãos Joel e Ethan Coen é também o trabalho mais amargo e pessimista deles. Bressoniano, ainda que mantendo o humor característico de várias obras anteriores da dupla, é uma reflexão seca e sombria sobre a presença do Mal no mundo e a inutilidade dos mais velhos, dos mais éticos, dos mais “fracos” das gerações mais antigas, que morrem pouco a pouco, em combatê-lo, pois, sentindo-se com o correr dos anos abandonados por Deus e vendo-se impotentes diante do surgimento de um novo demônio, tal qual o Mammon bíblico, neste mundo que se torna inexplicavelmente mais e mais violento, retiram-se dele para a companhia apenas de seus fugazes sonhos, conforme enuncia o final, que será frustrante para muitos. Como em L´Argent (1983), Um Plano Simples (1998), O Tesouro de Sierra Madre (1948) e tantos outros, o dinheiro é a abertura por onde o Mal se infiltra entre os homens. Seguindo o romance original de Cormac McCarthy quase que linha por linha, narra a história de um caçador, o bom sujeito e veterano do Vietnã Llewelyn Moss (Josh Brolin, excelente), que, durante uma frustrada caçada a antílopes, por acaso topa no deserto do Texas com um cenário de entrega de drogas que terminou em tiroteio e massacre, com vários corpos espalhados, enorme carregamento de heroína numa caminhonete perfurada a bala e, principalmente, uma maleta com mais de 2 milhões de dólares. Mesmo hesitando, Moss pega o dinheiro, na esperança de proporcionar uma vida melhor para si e para a sua mulher, Carla Jean (Kelly MacDonald). No entanto, por um instante moral que lhe custará caro, retorna ao local e passa a ser perseguido pelos traficantes mexicanos e por um misterioso e implacável assassino, Anton Chigurgh (Javier Bardem, a gaze blank and pitiless as the sun/um olhar vazio e impiedoso como o sol, novamente Yeats), que munido de uma arma de ar comprimido usada em matadouros, possui um código moral muito particular como justificativa para abater as suas vítimas. No meio deles, a caçada a ambos empreendida pelo ético xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), um herói da Segunda Guerra, o “velho” que a cada dia anda mais perplexo com o estado de violência que toma conta do mundo, ao ver um genuíno anjo do mal empilhando cadáveres, e que, por isso, tenta convencer Moss, pela esposa dele, a se entregar. Mas sem muitas esperanças, pois, de acordo com suas falas no livro de McCarthy, “vive em silêncio o deus que esfregou a terra a seguir com sal e cinza”. Assim, sentindo-se impotente para enfrentar este anjo do mal, já que “pessoas ruins não se pode governar de jeito nenhum”, aposenta-se, e o filme adquire um tom crepuscular nas duas emblemáticas seqüências finais.

Tal como as estepes geladas cobertas de neve de Fargo (1996), aqui outra paisagem inóspita também se descortina e se impõe desde as primeiras tomadas. No caso, a aridez do deserto, materialização da terra devastada dos últimos dias da humanidade, que se anunciam com a chegada da besta psicótica de Chigurgh. Também como em outros trabalhos dos Coen, tipos provincianos, os rednecks, à exceção de Chigurgh, pontuam o filme com seus sotaques caipiras sonoramente característicos, em divertidos diálogos que ocorrem sem a menor pressa, sintonizando-se com a escrita telegráfica e enganosamente simples de McCarthy. E, embora violento como Fargo e Ajuste Final (1990), o filme é menos gráfico em sua violência que o livro, pois a câmera precisamente posicionada do fotógrafo Roger Deakins (O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford) evita os miolos espalhados e os dedos decepados descritos com certa minúcia e freqüência na obra original, algo que encheria de orgulho David Cronenberg. Também, mais concentrados e econômicos, os Coen deixam de lado os maneirismos formais de outros trabalhos, como Arizona Nunca Mais (1987) e A Roda da Fortuna (1994). Assim, com um rigor clássico nos enquadramentos e nos cortes precisos, em seqüências magistrais, como aquela que mostra Moss escondendo o dinheiro no duto de ar do motel ou a sua espera silenciosa por Chigurgh no quarto escuro de um hotel, e quase nenhuma trilha sonora, o filme abre-se tranqüilo para o final anticlimático. Não para um esperado confronto épico típico de faroeste, gênero que encontraria aqui um lamento para sua despedida, na narração de um enigmático sonho do agora ex-xerife Bell, cujo olhar de desalento na última cena é também síntese desse desencanto com a violência e o terror que regem o mundo, onde o Mal parece ter se incorporado de vez aos homens. Sonho que, junto com a bestialidade psicótica de Chigurgh, não deixa de ser o prenúncio do Apocalipse, materializado no romance seguinte de McCarthy, o emocionante A Estrada (2007).

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Ao Lado da Pianista

(La Torneuse de Pages, França, 2006)



Aos 10 anos, a dedicada Mélanie, então promissora aluna de piano e filha de humildes açougueiros, é reprovada com desdém na prova para entrar no conservatório, ao se distrair na audição com uma das juradas. Anos depois, já adulta (e bem mais sexy, bien sur!), aproxima-se da família desta última, que considera a responsável pelo seu fracasso, uma pianista concertista famosa, Ariane Fouchécourt (Catherine Frot), mas que depois de um acidente de automóvel anda meio instável emocionalmente. De babá do filho dela na grande mansão da família à viradora de páginas em importantes concertos ao lado de Ariane, aos poucos, construindo uma cumplicidade nessa delicada relação e às custas de pequenas maldades aqui e ali, Mélanie (Deborah François) vai “orquestrando” a sua sutil vingança, neste pequeno e eficiente suspense do diretor e também músico erudito Denis Dercourt, cuja refinada arquitetura não esconde as influências de Claude Chabrol, principalmente de As Corças (1968) e A Fera Tem Que Morrer (1969). Aqui, com menos carnalidade, mas, ao fitar constantemente o rosto de sua ambígua protagonista loira, mais etéreo, com uma sensualidade feminina mais do que entrevista em cenas como a do quase beijo romântico entre a elegante Catherine Frost e a da sua musa ardilosa (pueril só na aparência), a belíssima Deborah François. E, tal como nas obras do mestre Chabrol, razoavelmente cruel em seu desfecho ao som de Bach.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Juno

(EUA/Canadá/Hungria, 2007)



Ao contrário dos adolescentes de Paranoid Park, de Gus Van Sant, que, na ausência de adultos, tentam entender e se expressar ou se calar num mundo bastante nebuloso ao seu redor, mas que acabam girando em falso em torno dele, representado pelas repetitivas manobras de skate, os adolescentes, ou melhor, Juno, a adolescente do título deste pequeno filme, move-se num mundo ensolarado, fofinho e transparente, embalado por uma trilha alternativa que se quer legalzinha, sublinhando de maneira óbvia os momentos mais cômicos, que são muitos, ou os mais emocionais, que são consideráveis, como nos filmes de Wes Anderson. Menina precoce e inteligente, aos 16 anos, Juno (Ellen Page) decide ter a primeira transa com o seu melhor amigo (o magrelo, mas bastante simpático Michael Cera, de Superbad - É Hoje). Mas, mesmo se achando tão inteligente e capaz de tomar a iniciativa, ficando inclusive por cima do rapaz na hora do coito, acaba engravidando logo de cara. Como no superestimado Ligeiramente Grávidos (2007), o sexo aqui é castrador, típico da Era Bush, e tolhe cedo as liberdades da menina, que mesmo assim, e com o apoio do pai compreensivo e da madrasta nem tanto, decide ter o bebê e doá-lo depois a um casal que escolheu num anúncio de jornal com a ajuda da amiga cabeça-de-vento. O casal, representado por Jason Bateman e Jennifer Garner, repetindo a parceria de O Reino (2007), parece ser um daqueles pares perfeitos, típicos dos subúrbios de classe média alta da América vistos nos comerciais de margarina. Especialmente ele, que é supercool, pois é músico guitarrista e curte bandas e filmes Z de terror, tal como Juno. Assim, além do bebê, gesta-se uma amizade que se quer adulta, graças às intromissões freqüentes da menina no dia-a-dia do casal, no dele, sobretudo, que ela depois descobre não ser tão perfeito quanto esperava. Filme simpatiquinho de Jason Reitman (Obrigado por Fumar, 2005) e um tanto ordinário em seu artesanato, moldado como inúmeros outros filmes ditos independentes americanos, apoiado essencialmente na performance de Ellen Page, que, com suas tiradas engraçadinhas, age quase sempre com aquele mesmo tom de irritante superioridade diante do mundo, visto no igualmente emasculador MeninaMá.Com (2005), embora ela aqui aparente ter um pouco mais de coração. Decepcionante, apesar do grande sucesso de bilheteria e das imerecidas indicações aos principais prêmios Oscar deste ano.