quinta-feira, outubro 18, 2007

+Mais! um para a Tropa

Eu não ia divulgar nada, mas depois pensei em divulgar. Aliás, vou divulgar este texto publicado no último domingo (14/10) no caderno Mais!, da Folha de São Paulo. Pois, afinal, quem quer rir, tem que fazer rir, porra!



Ponto de Fuga

A caveira da elite

Do combate violento à corrupção, "Tropa de Elite" se insinua pela vida privada, evitando todo clichê; é como uma polifonia coral: cada voz tem seu percurso, mas confere sentido às outras

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Scarface", filme de Brian de Palma (1983), expõe os mecanismos do tráfico internacional de cocaína. Conta a trajetória de um chefão da máfia que começou de baixo e passou por todas as etapas. Indica, em níveis progressivos, as articulações dessa grande rede criminosa.
Brian de Palma retoma, atualizando e dilatando, o outro "Scarface", de 1932, mítico, dirigido por Howard Hawks. Há um paralelismo de situações. Brian de Palma fala da cocaína; Hawks das bebidas alcoólicas, já que sua trama se passa nos tempos da Lei Seca norte-americana.
"Tropa de Elite", dirigido por José Padilha, inscreve-se nessa linhagem.
Com, pelo menos, duas diferenças importantes. Primeiro, seu eixo centra-se na polícia, e não nos bandidos. Segundo, o vetor vertical, conduzido por um protagonista, é abandonado. O filme se espraia horizontalmente.
Enfrenta circunstâncias intrincadas no meio policial, graças a diversos personagens e situações. Seu objetivo não é alcançar a esfera dos manda-chuvas maiores, nacionais ou internacionais, nem do lado da lei nem do lado do crime.
Aqui e ali, surge alguma alusão a um oficial superior ou a um deputado.
Do combate violento à corrupção, o filme insinua-se pela vida privada, evitando todo clichê ou simplificação. Ao caracterizar ambientes complementares, festa de gente rica, aula na faculdade, a convicção permanece.
"Tropa de Elite" é como uma polifonia coral. Cada voz tem seu percurso justo, individualizado, mas confere sentido às outras vozes que cantam ao mesmo tempo, sem nunca entrar em uníssono.

Modulação
Esse modo de filmar, expondo vários enfoques, dando humanidade, por vezes contraditória, à trama de relações humanas, tende a diminuir o maniqueísmo. Há, de início, os bons e os maus policiais. Há a classe média, acusada de consumir drogas e, assim, de ser a verdadeira responsável pelo tráfico.
Mas o bom soldado se transforma pouco a pouco num animal feroz. Na última cena, ao assassinar o líder dos criminosos, sua arma aponta, ameaçadora, para a câmera, ou seja, para a própria classe média que constitui a platéia. A mensagem moralista ("ao usar drogas vocês, os ricos inconseqüentes, estão matando meninos no morro") dissolve-se na fúria violenta.

Bemol
Uma passagem em "Scarface", de Brian de Palma, diz que, de cada 10, apenas 1 carregamento contrabandeado de drogas é apreendido. Essa proporção pequena estaria prevista na contabilidade dos traficantes. No mundo inteiro, quem quiser consegue facilmente a maconha, o ecstasy, a cocaína que desejar. Sinal de que o combate está perdido de antemão.

Maior
Emana uma lição implícita do "Scarface" de 1983 e do antigo, de 1932, quando são postos lado a lado. A Lei Seca, nos EUA, serviu apenas para que os criminosos se organizassem e se fortalecessem.
Em escala muito maior, a criminalização das drogas, hoje, não faz outra coisa. Em "Tropa de Elite", a voz "off" fala num "sistema" para caracterizar as relações de corrupção inerentes ao funcionamento policial.
As tropas de elite querem sair desse sistema pela honra, pela coragem, pela honestidade.
Elas conseguem apenas cair num outro, muito maior, que as ultrapassa. Um sistema cujas determinantes estão fora da legalidade, mas que tem leis próprias indestrutíveis e impõe uma guerra terrível, crônica, com milhares de vítimas, diretas ou colaterais, e destinada sempre ao fracasso.

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