sexta-feira, agosto 31, 2007

O Grande Chefe

(Direktøren for det hele/The Boss of It All, Dinamarca/Suécia/Islândia/Finlândia/Itália/Noruega/Alemanha/França, etc., 2006)



Na Dinamarca, um diretor de uma empresa que não sabemos direito do quê (TI?), Ravn (Peter Gantzler), atribui todas as decisões ruins que tem de tomar, como corte de benefícios e demissões, à figura do Grande Chefe, o mitológico presidente que comanda a companhia remotamente dos EUA, por e-mails, sem nunca ter posto os pés no local, já que ele não existe, é apenas uma fabulação de Ravn, o verdadeiro chefe do lugar. Assim, o fato de nunca ter que assumir as decisões amargas, pondo a culpa num bode expiatório imaginário, torna Ravn sempre popular e bonzinho com os compreensivos funcionários. Um dia, no entanto, uma negociata com islandeses duros necessitará da presença física do Grande Chefe. Para isso, contrata um ator canastrão, Kristoffer (Jens Albinus, o Stoffer louco por uma suruba total de Os Idiotas), para o papel do chefão, a princípio pequeno, mas que acabará se ampliando além da conta do que Ravn gostaria, pois o tal do ator está disposto a explorar todo o seu potencial dramático que supõe possuir para interpretar a farsa.

Uma espécie de The Office dinamarquês, com a mis-en-scène desequilibrada no espírito do Dogma, como cortes bruscos, dentro do próprio plano, iluminação variável, enquadramentos ruins ou propositalmente sofríveis, nenhuma trilha sonora, e um humor também dinamarquês. Ou seja, niilista e gélido. Tão gélido que o paralisa muitas vezes, ao mimetizar situações até que bem reais do dia-a-dia de qualquer empresa. Ainda assim, é bom ver seu diretor, Lars von Trier, que narra o filme e até aparece refletido na janela do prédio no começo, com câmera em punho, nesta narrativa mais leve, “inofensiva e inútil”, conforme seus dizeres, saindo um pouco daquele mesmo esquema que vinha repetidamente caracterizando seus melodramáticos trabalhos anteriores: o de culpar os EUA por todas as desgraças que acontecem no mundo (Dançado no Escuro, Dogville, Querida Wendy, Manderlay, etc.), e que já se mostrava nos estertores. E ainda proporciona uma reviravolta interessante no final, onde a vaidade do ator (de qualquer ator) falará mais alto sempre, para desespero dos funcionários, e uma breve reflexão sobre a realidade e a representação, em que esta última definitivamente se impõe, em qualquer lugar, sobretudo no esquisito mundo do trabalho e seu estúpido jargão corporativo.



Reunião de sinergia com o RH...

quinta-feira, agosto 30, 2007

Espíritos 2: Você Nunca Está Sozinho

(Faet/Alone, Tailândia, 2007)



Os mesmos sustos reforçados pela trilha sonora estridente, a mesma premissa intrigante apresentada no trailer deste e do anterior, Shutter (2004), e que nada tem a ver com este, no entanto, a não ser o título nacional oportunista e os nomes impronunciáveis dos diretores e roteiristas tailandeses: Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom. O resto também é conhecido. Como a mesmíssima menina fantasma cabeluda e vingativa de tantas produções orientais à Ringu – O Chamado. E com a mesma cena do elevador e do corredor de hospital vista em Ju-On, O Grito, The Eye, The Eye 2, One Missed Call, etc., na estória de Kim, que, morando na Coréia do Sul, ao saber que a mãe está para morrer, volta à Tailândia. E lá presencia aparições sinistras de sua irmã. Detalhe: até a adolescência, viviam juntinhas, literalmente, pois eram gêmeas siamesas. Outro detalhe: ela não sobreviveu à separação. E, por algum motivo, quer a vingança para desespero dos cachorros e plantas da família. Com produção bem-cuidada, alguns achados visuais e uma reviravolta que garante o interesse até o seu final sob o signo do fogo, um filme que, como o anterior, tem lá seus momentos arrepiantes, embora estes sejam mais e mais esperados a partir da metade.

quarta-feira, agosto 29, 2007

Possuídos

(Bug, EUA, 2006)



Desde as primeiras tomadas de Bug, um plano aéreo noturno de um motel decrépito no meio do nada em Oklahoma, a sensação de solidão e isolamento do personagem de Ashley Judd se insinua no espectador. E não o abandona até o seu intenso desfecho. Amargando a perda do filho pequeno, se entupindo de álcool e drogas e trabalhando como garçonete num bar vagabundo de lésbicas, ela é ainda perturbada por constantes telefonemas anônimos, que acredita serem de seu ex-marido (Harry Connick Jr.), recém-saído da prisão. Também crê estar sendo observada por ele. Uma noite, sua única amiga lhe apresenta um sujeito frágil e tão solitário quanto ela (Michael Shannon, de As Torres Gêmeas). Iniciam um romance. No entanto, ele, um desertor do Exército, em certo momento diz ter sido vítima de experimentos militares quando servia no Iraque e que o deixaram impregnados de insetos minúsculos que procriam sem parar debaixo da sua pele. E aí a paranóia, antes sugerida por sons do telefone, do ar-condicionado e dos ruídos esquisitos do alarme, vai se instaurando aos poucos no ambiente. E a contagia. Sexualmente, sobretudo. Embora a ameaça nunca seja visível, ela também passa a compartilhar da mesma visão dos estranhos insetos em toda a parte e a se mutilar como ele. E a paranóia se intensifica e toma conta do lugar, reveste suas paredes, põe a nu os indivíduos, os afastam de vez do mundo. Antes, o ex-marido, violento, os espreita e, certa feita, ao forçar a entrada no quarto e notar a ausência da TV, pergunta como viver sem o aparelho, como saber do que está acontecendo no mundo sem a televisão. Não é uma fala gratuita. A alienação progressiva de Judd, prefigurando a loucura do que virá, a determina.

Econômico, sem disfarçar as suas origens teatrais (baseado em peça off-Broadway de Tracy Letts), e até intensificando-as no terço final, a ponto de nunca permitir um respiro, ou um plano geral dos efeitos espetaculares e sons dos sobrevôos de helicópteros, só sugeridos por luzes e vibrações, quando os dois protagonistas instalam-se de vez em sua loucura, perdem o controle de si e aceleram a inevitável degradação, William Friedkin, com pleno do domínio do limitado espaço cênico, perscrutado em cada centímetro por sua câmera de lentes fechadas em planos-detalhe ou close-ups ou planos médios, faz aqui um trabalho de mestre, sensorial, concentrado, convergindo para as mesmas obsessões epidérmicas e inquietações orgânicas e sexuais de um David Cronenberg, por exemplo, mas mantendo coerência rara com o resto da sua obra. Daquela que mostra o indivíduo sem controle do corpo, degenerando-se (O Exorcista), tragado e desumanizado pelo submundo (Parceiros da Noite), sacrificando-se (Viver e Morrer em Los Angeles, Caçado), ou mais vítima, ainda que violenta e selvagem em seus impulsos primitivos, de um governo militarista, suposta fonte de todo o mal e (des)controle do ser humano (Regras do Jogo, Caçado). Para isso, conta com as fabulosas interpretações de Judd, mais desglamourizada do que nunca, e de Michael Shannon, reprisando o papel do palco, e com um texto cru e forte. Além disso, o sentimento de deslocamento dos personagens, de se encontrarem fora do mundo, e onipresente aqui até o último instante, quando a tela se escurece de vez, sentimento muito caro aos românticos do século XIX, e a completa entrega do casal a uma paixão auto-destrutiva, sinônimo de doença, que só pode ser plenamente realizada ou “curada” com a morte, fazem de Bug o mais romântico filme do ano. Sem concessões, claro, a ponto de deixar o público mal-amado e mal-acostumado de shoppings e Reservas Culturais da vida se “coçando” de raiva no final da sessão. E isso já é mais do que nada nestes pomposos tempos, tão preguiçosos, vazios, entorpecidos pelos ditos novidadeiros do já visto antes, e conformistas.

terça-feira, agosto 28, 2007

Dependência



O Ministério da Saúde adverte: o sarcasmo dele é contagioso. E dá-lhe bengaladas verbais!

Santiago

(Brasil, 2006)



Em belíssima fotografia em preto-e-branco, João Moreira Salles abre seu casarão, ou melhor, seu “palácio da memória” que dá para o palácio da memória do fascinante mordomo argentino da família, Santiago Merlo, hoje falecido. Misturando línguas e dialetos, dono de uma memória prodigiosa, durante mais de 30 anos e 30 mil páginas Santiago colecionou biografias de reis e rainhas de dinastias e aristocracias do mundo inteiro, tocou piano, rezou em latim, viu as lutas de boxe como as lutas dos gladiadores romanos no Coliseu, dançou com as mãos e serviu como um fiel súdito florentino a alta sociedade portenha e carioca, os seus Médicis e Bórgias da época. João retoma o material bruto de um filme seu começado há 15 anos e nunca terminado. Com as imagens fantasmagóricas ressuscitadas e influenciadas por Ozu nos rigorosos enquadramentos, faz um filme sobre si a partir de Santiago, sobre o descompasso entre a memória afetiva, que nunca nos abandona, e o tempo daquilo que fica para trás e, ainda que quase nunca consiga se desvencilhar da relação mordomo-patrão e também de certa auto-indulgência, obtém momentos preciosos, principalmente fora do quadro ou entre a preparação de uma cena e outra. Meditativo, melancólico, maravilhoso.

segunda-feira, agosto 27, 2007

O Ultimato Bourne

(The Bourne Ultimatum, EUA, 2007)



Jason Bourne ou David Webb ou, melhor ainda, “Gilberto De Piento” (Matt Damon) continua à procura da sua identidade perdida e assim desvendar de vez seu passado apagado a força, mas que aparece em flashes perturbadores, e descobrir o quê e quem o tornou uma máquina de matar das mais eficientes, neste terceiro (e melhor) episódio da cinessérie baseada no livro de Robert Ludlum, que mantém a mesma homogeneidade visual dos anteriores e é dirigido com ainda mais vigor por Paul Greengrass, capaz de imprimir em cada segundo, com a sua tipica câmera trepidante, um nervosismo daqueles, de ação ininterrupta por vários países, de deixar o espectador desorientado, aturdido, ligado a 220V, que é exemplar em ao menos duas seqüências extraordinárias: na estação Waterloo em Londres e na perseguição pelos telhados de Tangier, no Marrocos. Em sua busca, pontuada por socos potentes, Bourne é apenas uma ponta do iceberg. Descobrir a identidade é expor ao público um programa ultra-secreto e ilegal de treinamento de máquinas de matar autônomas da CIA, o que o faz ser perseguido por um dos idealizadores do programa, interpretado por David Strathairn, interessado na sua eliminação, e ser ajudado por Joan Allen, que o rastreava no episódio anterior. Além disso, terá como ajuda extra Julia Stiles, outra agente rival, mas que aqui vira o interesse romântico do protagonista, capaz de pintar e cortar os cabelos em questão de minutos, sem precisar ir ao SoHo Cabelereiros, por incrível que pareça. Até isso a CIA deve ensinar... Bom, divago. No todo, filme eletrizante em suas seqüências de ação puramente físicas e que, no entanto, não teria a mesma força sem o seu elenco de sólidos atores, encabeçado por Matt Damon, que, em sua pouca expressão e aparente neutralidade, lembra os atores modelos de Robert Bresson, uma espécie de Pickpocket das ruas e telhados de Tangier ou Paris: autômato, instintivo e em constante movimento, apesar da angústia de seu passado, além de fornecer ao filme um realismo fora do comum, renovando o gênero.

sexta-feira, agosto 24, 2007

A Morte Pede Carona

(The Hitcher, EUA, 2007)



Pari passu ao roteiro original de Eric Red, sem dar muitas explicações, veloz (dura menos de uma hora e meia), mas não tão furioso quanto o clássico homônimo dos anos 80, pois sua violência aqui é mais estetizada, menos enervante, e a sujeira toda do anterior é filtrada pelas lentes da fotografia de estética publicitária empregada pelo diretor Dave Meyers. E a garota, neste vivida pela bela Sophia Bush, ganha mais destaque que o rapaz do filme antigo, caçados sem motivo aparente por um psicopata implacável (Sean Bean, no papel que foi de Rutger Hauer), durante uma travessia pelas estradas desertas do Novo México. Ela, inclusive, em vez de sair correndo gritando, vira nos derradeiros momentos uma espécie de clone, com botinhas e microssaia até, das caçadoras de zumbi com TPM de Resident Evil. Razoável, no entanto, como filme de ação, com alguns sustos e boas cenas de perseguição (sim, eu curto ver carros capotando), mas na minha opinião a refilmagem do filme de Robert Harmon já havia sido feita antes, melhor e se chamava Breakdown – Perseguição Implacável (1997), intensa película dirigida com muito brilho por Jonathan Mostow.

quinta-feira, agosto 23, 2007

A Ponte

(The Bridge, EUA, 2006)



Um documentário aparentemente ousado na temática, em que a câmera voyeur do cineasta Eric Steel aguarda dia a dia observando a distância os transeuntes que atravessam a ponte Golden Gate, famoso cartão-postal de São Francisco e ponto preferido dos suicidas americanos, à espreita para registrar quem vai se atirar nas águas geladas da baía. E capta vários desses pulos, para satisfação da mórbida curiosidade do espectador, mais interessado em ver os infelizes se atirando que em entender por que Camus considerava o suicídio o único problema filosófico realmente sério. O diretor também não parece muito interessado em esclarecer o porquê da preferência pelo lugar ou dessa questão filosófica do suicídio em si, e o filme, entre um pulo e outro, coleciona depoimentos repetitivos dos familiares dos suicidas, que também pouco acrescentam e quase sempre caem na vala comum dos motivos médicos, da depressão à esquizofrenia e bipolaridade, ou sociais, como falta de maiores perspectivas na vida, etc. Em vez de uma meditação sobre a morte, esses testemunhos tornam-se, na verdade, longas sessões de desabafo emocional, banalizando o assunto em vez de transcendê-lo. Há, no entanto, um forte depoimento de um rapaz que sobreviveu milagrosamente à queda, tendo mudado de idéia no meio do caminho (!). Ainda assim, o motivo maior de tudo, a questão fundamental da filosofia, se a vida vale ou não ser vivida, tendo consciência de seu absurdo, de acordo com Camus, em O Mito de Sísifo, permanece oculta e morre imersa nas águas profundas do lugar. Ao menos, no final das contas, há um esforço para se evitar o sensacionalismo, e o filme caminha de maneira bastante equilibrada (sem trocadilhos, please!).

Flor do Lácio

Achei isto engraçadinho, mais a preguiça de postar sobre A Ponte, então dá-lhe Control-C/ Control-V (ou Maçã-C/Maçã-V, para quem usa o Macintosh da Big Manzana):

Dicas para se escrever bem, por Ronaldo Gasparini

1. Deve-se evitar ao máx. a utiliz. de abrev., etc.

2. É desnecessário fazer-se empregar de um estilo de escrita demasiadamente rebuscado. Tal prática advém de esmero excessivo que raia o exibicionismo narcisístico.

3. Anule aliterações altamente abusivas.

4. não esqueça as maiúsculas no início das frases.

5. Evite lugares-comuns como o diabo foge da cruz.

6. O uso de parênteses (mesmo quando for relevante) é desnecessário.

7. Estrangeirismos estão out; palavras de origem portuguesa estão in.

8. Evite o emprego de gíria, mesmo que pareça nice, sacou??... então valeu!

9. Palavras de baixo calão, porra, podem transformar o seu texto numa merda.

10. Nunca generalize: generalizar é um erro em todas as situações.

11. Evite repetir a mesma palavra pois essa palavra vai ficar uma palavra repetitiva. A repetição da palavra vai fazer com que a palavra repetida desqualifique o texto onde a palavra se encontra repetida.

12. Não abuse das citações. Como costuma dizer um amigo meu: "Quem cita os outros não tem idéias próprias".

13. Frases incompletas podem causar

14. Não seja redundante, não é preciso dizer a mesma coisa de formas diferentes; isto é, basta mencionar cada argumento uma só vez, ou por outras palavras, não repita a mesma idéia várias vezes.

15. Seja mais ou menos específico.

16. Frases com apenas uma palavra? Jamais!

17. A voz passiva deve ser evitada.

18. Utilize a pontuação corretamente o ponto e a vírgula pois a frase poderá ficar sem sentido especialmente será que ninguém mais sabe utilizar o ponto de interrogação

19. Quem precisa de perguntas retóricas?

20. Conforme recomenda a A.G.O.P, nunca use siglas desconhecidas.

21. Exagerar é cem milhões de vezes pior do que a moderação.

22. Evite mesóclises. Repita comigo: "mesóclises: evitá-las-ei!"

23. Analogias na escrita são tão úteis quanto chifres numa galinha.

24. Não abuse das exclamações! Nunca!!! O seu texto fica horrível!!!!!

25. Evite frases exageradamente longas pois estas dificultam a compreensão da idéia nelas contida e, por conterem mais que uma idéia central, o que nem sempre torna o seu conteúdo acessível, forçam, desta forma, o pobre leitor a separá-la nos seus diversos componentes de forma a torná-las compreensíveis, o que não deveria ser, afinal de contas, parte do processo da leitura, hábito que devemos estimular através do uso de frases mais curtas.

26. Cuidado com a hortografia, para não estrupar a língúa portuguêza.

27. Seja incisivo e coerente, ou não.

28. Não fique escrevendo (nem falando) no gerúndio. Você vai estar deixando seu texto pobre e estar causando ambigüidade, com certeza você vai estar deixando o conteúdo esquisito, vai estar ficando com a sensação de que as coisas ainda estão acontecendo. E como você vai estar lendo este texto, tenho certeza que você vai estar prestando atenção e vai estar repassando aos seus amigos, que vão estar entendendo e vão estar pensando em não estar falando desta maneira irritante.

29. Outra barbaridade que tu deves evitar chê, é usar muitas expressões que acabem por denunciar a região onde tu moras, carajo!... nada de mandar esse trem... vixi... entendeu bichinho?

30. Não permita que seu texto acabe por rimar, porque senão ninguém irá agüentar já que é insuportável o mesmo final escutar, o tempo todo sem parar.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Satã

(Sheitan, França, 2006)



Cinco jovens baladeiros multiétnicos, três rapazes e duas meninas, após confusão aprontada por um deles, o boboca Bart, numa noitada às vésperas do Natal, noitada típica de boy paulistano, em boate de onde são enxotados, partem para continuar a jornada de farra na casa de campo da família de uma das jovens do grupo, que conheceram naquela noite ao som do visceral e diabólico Sheitan. Lá, em meio a um amontoado de cabeças e corpos de bonecas, olhos e bracinhos de plástico pendurados, moleques retardados que nadam nus e molestam as meninas (e os meninos, também), cabras e, principalmente, um bode (o diabo?) que cruzam o caminho deles na chegada, deparam-se com uma mulher que vive escondida nos cantos da grande casa, à espreita, em meio às bonecas, e um estranho caseiro, a princípio simpático. Mas, claro, só a princípio...

Câmera que se movimenta o tempo todo, assumindo diferentes perspectivas, mas nunca tremida, neste terror rural da mesma estirpe de Deliverance e dos recentes Calvaire e A Casa dos Mil Corpos, com um clima inquietante que se instaura aos poucos, antecipado pela presença de elementos sinistros que vão surgindo aqui e ali, dando dicas de que o pior está para acontecer, confundindo pesadelo com realidade, e um Vincent Cassel insanamente sorridente como o “gentil” caseiro Joseph são os achados deste atmosférico filme. Dirigido com estilo por Kim Chapiron, outro bom nome do atual terror francês, que opta mais pelo humor de riso nervoso que pelo já tradicional shock fest, sinistro, embora não tão intenso quanto Calvaire ou o sensacional Haute Tension, de Alexandre Aja. Ainda assim, diabolicamente divertido, sobretudo na meia hora final. Ah, depois dos americanos, parece que é a vez dos franceses descobrirem nestes filmes que nunca vão passar nos cinemas daqui as delícias da vida no campo, onde o leite, os ovos e até a carne são servidos fresquinhos, fresquinhos. U-lá-lá.



Joseph "Hannibal"?

terça-feira, agosto 21, 2007

Bubble

(Ha-Buah/The Bubble, Israel, 2006)



Com jeitão de sitcom em seu miolo, tipo Friends ou Will and Grace sabra, sobretudo por causa dos diálogos e citações marcadamente gay-pop, apesar da guturalidade do hebraico, um filme que aos poucos vai expandindo suas fronteiras para além do lado afetivo ou emocional, ao narrar, de maneira bem moderninha e econômica, a estória de um reservista gay que divide um apartamento com um amigo também gay e uma jovem hetero aspirante a atriz, e que, após presenciar um terrível incidente no posto de controle na Cisjordânia, onde servia, volta para a casa num bairro que é uma espécie de Greenwich Village da cosmopolita Tel-Aviv, ou a “Bolha”. Nesse lugar, a decana e sangrenta luta entre palestinos e israelenses parece não abalar tanto o dia-a-dia de seus descolados moradores. Mas só até o dia em que este reservista passa a ter um caso amoroso com um palestino que conheceu na fronteira naquele dia de infortúnio. Aí, ele e seus amigos tratarão de dar um jeito de mantê-lo em Tel-Aviv, mesmo ilegalmente, pois na sociedade árabe da Palestina, ainda mais intolerante com os gays, seu destino é mesmo se casar com uma mulher por pressões familiares e, eventualmente, participar de atentados contra israelenses, organizados por seu cunhado radical, apropriadamente chamado de Jihad. Assim a política volta a chacoalhar a vida desses moradores, que organizam até uma rave contra a ocupação israelense nos territórios. E aí ocorre um atentado sangrento. E aí o filme, tão leve no começo, retoma o esquematismo e o círculo vicioso das retaliações a bomba ou a tiros comuns no Oriente Médio, com trágicas conseqüências.

Um bom filme de Eytan Fox (Delicada Relação, 2003), bem franco e direto no tratamento da homossexualidade dos protagonistas de etnias rivais, mas que seria melhor se, em seu final previsível, optasse pelo perdão em vez da costumeira vingança tipo “olho por olho” que dilacera ambos os povos. Mas, nos dias atuais, em que ninguém parece disposto a perdoar nem deslizes verbais em sites virtuais de amizade, por exemplo, imagine então perdoar um atentado... Mas não custava, ao menos na ficção, propor isso. Seria uma alternativa surpreendente. Pois não é com bomba em cafés de Tel-Aviv ou incursões militares em Nablus, causando mais e mais mortes de inocentes e gerando mais ódio, que essa disputa quase secular vai ser resolvida, se é que um dia vai ser resolvida. Muito menos com rave movida a trancer e ecstasy, como ingenuamente acredita o trio de jovens da “bolha”.

segunda-feira, agosto 20, 2007

Os Simpsons – O Filme

(The Simpsons Movie, EUA, 2007)



Como andam dizendo ou escrevendo, um episódio estendido da longeva série animada de TV, inclusive com a famosa abertura, mas que funciona muitíssimo bem no cinema, em glorioso CinemaScope. Melhor do que eu poderia esperar, já que há tempos deixei de acompanhar a série, um tanto desgastada, é apoiado no tradicional tiroteio de referências pop e na descarada esculhambação a astros da música, do cinema, da política, em ótimas piadas, que se sucedem num ritmo frenético e num humor literalmente corrosivo, na estória em que Homer arruma um porquinho de estimação e dá mais atenção a ele que a seu filho Bart, que, após correr peladão de skate pela cidade, humilhando-se e sendo mais uma vez ignorado pelo pai, se aproxima do religioso e sempre bondoso vizinho Ned Flanders. Enquanto isso, a nerd Lisa Simpson, desta vez caída de amores por um recém-chegado clone júnior e ambientalista do Bono, em seu documentário “Uma Verdade Irritante”, tenta alertar os moradores e as autoridades de Springfield para o elevado nível de poluição do lago local. O prefeito, politiqueiro como é, decide tomar providências inócuas, só para Homer, na sua eterna fascinação por rosquinhas, estragar tudo e colocar a cidade sob exagerada intervenção militarista do governo dos EUA, agora presidido por Arnold Schwarzenegger, e mais especificamente da incrivelmente poderosa Agência de Proteção Ambiental (ou “EPA”, na sigla em inglês), tornando real a profecia enunciada por Vovô Simpson num momento engraçadíssimo de descarrego durante a missa dominical. Revoltados, os moradores da cidade decidem linchar (mais uma vez) Homer, que consegue fugir e se mudar com a família para o Alasca, buscando um novo recomeço.

Ambientalistas, Homem-Aranha, Harry Potter (ou “Harry Porco”), Tom Hanks, Green Day até a Fox, que produz a série e o filme, ninguém é poupado, ou quase, bem como as tradicionais estocadas ao american way of life movido a gordurosos hambúrgueres. E todos os personagens da mitologia do seriado, do palhaço Krusty ao barman Moe e os cartunescos sádicos Comichão e Coçadinha, têm ótimas e muito bem aproveitadas participações neste filme delicioso e que continua até os créditos finais, com as primeiras palavras pronunciadas por Maggie, o bebê Simpson, em momento dos mais encantadores. Eu também quero a continuação!

sexta-feira, agosto 17, 2007

O Edifício Yacoubian

(Omaret Yacoubian, Egito, 2006)



Melodrama, ou melhor, novelão egípcio muito bem produzido de Marwan Hamed, com quase três horas de duração, que acompanha as alegrias e, principalmente, tristezas daqueles que moram ou trabalham no edifício do título, uma elegante construção neoclássica no centro do Cairo, remanescente dos tempos áureos da cidade, hoje decadente e cuja cobertura virou um grande cortiço. Entre os tipos do local, um velho engenheiro mulherengo, um “paxá”, como gosta de ser chamado, saudoso daqueles tempos mais elegantes, anunciado no segmento documental que abre o filme, e sufocado pela irmã possessiva, que quer lhe tomar o grande apartamento da família; um jornalista gay que tem um caso com um soldado casado, ousadia maior deste filme, ainda que as cenas envolvendo homossexualismo sejam bem pudicas; um dono de uma loja de veículos de luxo, que arruma mais uma esposa (maktub: por direito divino, qualquer muçulmano temente a Deus pode ter até quatro esposas de uma vez, de acordo com o que lhe afirma o xeque da mesquita que freqüenta, dando-lhe o aval desejado) e entra para a política, pagando um alto preço em ambos os casos; um jovem morador do terraço, ou “coelhário”, filho do zelador do prédio, que, recusado na academia de elite da polícia, adere ao movimento islâmico radical. Deixa também sua bela noiva, que pula de emprego em emprego por não suportar ser bolinada pelos gordos e sebosos patrões das lojas onde trabalha. De uma forma ou de outra, folhetinesca, sobretudo, os personagens se entrelaçarão, compondo um microcosmo um tanto acetinado da sociedade egípcia atual, a partir de um prédio, à maneira de Alila (2004), de Amos Gitai, sem a habilidade do grande diretor israelense (até nisso os israelenses superam os árabes, tóv meód, hahaha) e sem os extravagantes números musicais que costumam marcar as produções árabes, mas que se assiste com certo interesse e alguma curiosidade antropológica, sem, no entanto, grande entusiasmo, a ponto de sair dando cambalhotas pela rua no final da sessão, por exemplo. No conjunto, destaca-se a ótima interpretação do veterano ator egípcio Adel Imam, como Zaki El-Dessouki, o paxá playboy sessentão, que pinta os cabelos e sai por bares azarando mulheres bem mais jovens, que depois acabam lhe passando a perna, e que ainda tem uma longa e terna relação de amizade com uma elegante cantora-pianista de um restaurante de luxo, com quem relembra os bons momentos do passado “parisiense” da cidade e que lhe ajuda a descobrir que nunca é tarde para ser feliz. Ao menos, para os homens de uma sociedade eminentemente machista, como a dos países árabes. Creio que se o filme ficasse só nessa estória, seria bem mais tocante, divertido e, principalmente, menos cansativo.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Duchas Frias

(Douches Froides, França, 2005)



Dois recém-amigos mais uma menina, namorada de um deles. Judocas, os meninos, um mais técnico e estratégico (e mais rico, filho do patrocinador da equipe juvenil da França), outro mais forte, mais impulsivo. Adolescentes, hormônios e nervos à flor da pele. Uma noite, numa festa, os três se divertem e se enroscam. Um dia, no tatame, os três transam, em uma cena feita de impressionante naturalidade e erotismo. Um deles, já bem magro, para o campeonato europeu, precisa ainda perder mais alguns quilos para substituir na categoria um judoca que ele acabou machucando, prejudicando a equipe. Desde então, não come mais nada. Às vezes, nem água bebe. Ainda tem que lidar com o pai desempregado e a mãe neurótica e sovina. E ressente-se ao ver sua namorada cada vez mais à vontade com o colega com quem a compartilhou na transa. Isso mexe decisivamente com os seus nervos até o dia da competição. Sem moralismos, um bom pequeno filme do diretor Anthony Cordier, que concentra a sua força no trio jovem de protagonistas, corajoso nas cenas mais íntimas e que obviamente evoca o triângulo amoroso à Jules e Jim, só que mais rude, mais ríspido, não tão libertário quanto o do filme do Truffaut e mais de acordo com o mundo dos adolescentes forçados a ceder cada vez mais às pressões e responsabilidades da vida adulta (nem sempre tão séria ou responsável assim) que se avizinha.

terça-feira, agosto 14, 2007

Sem Reservas

(No Reservations, EUA, 2007)



Um filme em que o par perfeito para a perfeita ma non troppo Catherine Zeta-Jones é o inacreditavelmente perfeito Aaron Eckhart, ao contrário do tipo italiano brutino de Sergio Castellitto do filme original: simpático, sorridente, cozinha bem, tem certa modéstia (tipo “estou aqui porque quero cozinhar contigo” e não “porque quero o teu emprego, depois de ter aprendido todos os teus segredinhos culinários, passando por cima de ti e assumindo de vez a chefia da cozinha da Ofélia no teu lugar, capisce?”, como ocorre na vida real, real demais às vezes), arranha no italiano, é loiro, alto e gosta de ópera, ainda que sempre das mesmas e óbvias árias de La Traviata (“Brindisi: Libbiamo, ne'lieti”) e Turandot (“Nessun Dorna”), por exemplo. Ela, obcecada por perfeição, na cozinha, não quando o assunto é homens, está claro, e que, em vez de fazer terapia, prefere cozinhar para o terapeuta (Bob Balaban) durante as sessões, mal tem vida própria e, centralizadora, não suporta a companhia de outra estrela da culinária na cozinha do chique restaurante onde trabalha, na Bleecker Street (a autêntica de Nova Iorque, não aquele barzinho da moda da galerinha da Vila Madá). Não suportará no começo, claro. Um acidente, que mata a irmã e deixa a sua sobrinha (Abigail Breslin) órfã e em suas mãos, a obriga a reavaliar a sua vida agitada e tal e abrir aos poucos seu coração duro para o homem perfeito e que ocupa espaço às vezes demais em sua cozinha, com sua fingida estirpe italianada da Toscana, obviamente, mas que faz o melhor espaguete com pomodoro e manjericão do mundo, o que conquista a simpatia da sobrinha, claro, pouco afeita a trutas e outras sofisticações preparadas e impostas pela tia exigente no jantar.

Mais fluente e redondinho que a matriz original alemã, Simplesmente Martha (2001), também com menos conflitos, mais agradável em seus passeios pela cozinha de pratos apetitosos de Zeta-Jones, pela câmera sempre bem balanceada e cheia de filtros do convencional Scott Hicks (de Shine – Brilhante, 1996), terno e “fofinho”, sobretudo nos momentos em que Abigail está presente, é um “prato” cheio e óbvio para as mulheres que acreditam no príncipe encantado e acalentam essa ilusão. Mas e se esse o príncipe não lavasse toda aquela louça que suja depois de preparar tantas maravilhas apetitosas? Ah, isso é uma outra questão. E como acho isso tudo uma besteira, assim como o absurdo preço do quilo das trufas brancas em Nova Iorque, fico por aqui. Ou melhor, volto para a Garfagnana, na Toscana, onde as trufas são abundantes e baratas. E as mulheres, menos iludidas, acho, embora não tão belas como Zeta-Jones. Ciao.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Escorregando para a Glória

(Blades of Glory, EUA, 2007)



Desliza bem esta divertida comédia de Josh Gordon e Will Speck, que, à maneira de Zoolander (2001), mostra no início a rivalidade de dois dos maiores patinadores artísticos de todos os tempos, de estilos opostos e interpretados por Will Ferrell e Jon Heder. Por conduta antiesportiva, no entanto, são banidos para sempre das competições individuais, sendo obrigados a se unir e a formar uma dupla nada ortodoxa para voltar ao ringue de gelo. Assim, apesar das diferenças de egos, surge a primeira e improvável dupla masculina da história do esporte. Mais do que uma rivalidade de anos, há contudo uma forte carga homoerótica na disputa ou no novo “relacionamento” entre eles, o que rende momentos hilários, como um em que o machista e viciado em sexo Ferrell (de O Âncora, 2004) é obrigado a erguer pelos colhões o rival loiro e sensível Heder (de Napoleon Dynamite 2004), ao som da xaroposa I Don’t Wanna Miss a Thing, do Aerosmith, durante a apresentação de uma coreografia. E sem medo do ridículo, os dois atores se entregam com muita cara-de-pau aos seus tipos antagônicos e às coreografias improváveis, complementados por Will Arnett e Amy Poehler, um incestuoso casal de irmãos que interpreta seus arquiinimigos no esporte, nessa história despretensiosa e, sobretudo, politicamente incorreta do início ao fim, o que é ótimo, além das boas cenas de um esporte que, por si só, já é agregador de muita cafonice.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Primo Basílio

(Brasil, 2007)



Entre a antiga minissérie da Globo e este filme, também da Globo, fique com o livro. O original, de Eça de Queiroz, está claro, não aquele resumo do Fuvestão que você foi obrigado a ler “de orelhada” no cursinho ao som do violão desafinado daquele professor barbudo e babão de Literatura, que usava sandálias de couro, vestia por cima da pança peluda aquela velha camisa branca toda amarfanhada e tinha um hálito que bafejava cerveja e cigarro Dallas. Eu avisei, hein!

quinta-feira, agosto 09, 2007

Person

(Brasil, 2003)



Neste mundo atual de créditos de carbono e de comportamentos "são-paulinos", certinho, arrumadinho, complacente e, pior dos piores, politicamente correto ao extremo, em que qualquer impostura ou deslize lingüístico te expulsa de panelinhas, grupinhos, galerinhas, “tchurminhas", é sempre bom voltar à figura de Luís Sérgio Person, cineasta de espírito independente, sem papas na língua, que financiava seus próprios filmes, era avesso à panelinha do Cinema Novo, muito inquieto, autor de filmes inclassificáveis para a época do Glauber e do Cacá, como São Paulo S/A (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967), duas rigorosas obras-primas, além de diretor de teatro e de comerciais, algo que soube largar com a sabedoria de sua impulsividade latente, quando dirigir reclames de 30” e esperar por horas na ante-sala dos "gênios da propaganda" já estavam enchendo a sua paciência, e, sobretudo, que sempre procurou nos filmes que dirigia diálogo com o público e com a época retratada, ao contrário do “gênio baiano”. Sua “persona” é revisitada neste pequeno filme, mais afetivo que documental, ainda assim intenso, dirigido com carinho por sua filha Marina Person, que procura compor a trajetória do pai por meio de trechos bem escolhidos de seus filmes, gravações de entrevistas antigas, depoimentos de amigos como Carlos Reichenbach, Raul Cortez, Ney Latorraca, Jorge Ben, José Mojica Marins, Jean-Claude Bernadet, Paulo José, etc., e principalmente recordações impressas em cartas e nos filmetes familiares de Super-8, que pontuam o documentário. Mais do que o cineasta, Marina, junto com a sua irmã Domingas, busca o pai que partiu muito cedo, morto num acidente de carro aos 39 anos, quando as duas eram bem menininhas. E Marina demonstra em cada cena o quanto sente falta dessa figura paterna. Além disso, a escolha dos trechos selecionados e as entrevistas, mais do que exaltar a figura do cineasta, rendem momentos divertidos, nostálgicos e, principalmente, comoventes, além de, mais importante, nos incentivar a (re)ver toda a obra de Person, que aos poucos é lançada restaurada em DVD pela Vídeo Filmes.

quarta-feira, agosto 08, 2007

As Leis de Família

(Derecho de Familia, Argentina, 2006)



Pai e filho. Judeus, advogados por profissão. O filho, um defensor público e professor universitário de Direito Penal, em crise na vida e no casamento com uma professora de Pilates que era sua aluna e a quem ajudou num processo, que os aproximou e os uniu. O pai, uma “lenda” do Direito, um advogado com bom trânsito nos corredores do Palácio da Justiça de Buenos Aires, graças a sua habilidade política para se infiltrar com facilidade nas engrenagens e bifurcações do sistema, sem ter de enfrentar a burocracia e as filas. Com o prédio onde o filho trabalha condenado e os processos removidos para outro lugar, ele fica com um mês de tempo livre, ocioso pelas ruas da capital portenha. Chance de conhecer melhor o pai e de ficar mais tempo com o filho pequeno. Ou não, nesta crônica bem conduzida por Daniel Burman (O Abraço Partido, 2003, que também versava sobre o filho em busca da figura paterna), com momentos ora pungentes, ora engraçados. Tantos momentos “adoráveis” assim cansam certa feita, mas o filme é agradável, levado em tom de confidência não lamentosa e segura, sobretudo graças à interpretação de Daniel Hendler, ator recorrente de Burman, cujo discurso em primeira pessoa pontua a narrativa nunca de forma óbvia, até se calar em momentos de silêncio pungente, quando é a vez do filho assumir de vez o lugar do pai.

terça-feira, agosto 07, 2007

A Comédia do Poder

(L’Ivresse du Pouvoir, França/Alemanha, 2005)



Não há um plano neste filme de Claude Chabrol (A Dama de Honra, 2004) que se conjugue com outro de forma gratuita. Cenas de corredores, de garagens, de saídas de prédios, tudo é encadeado de forma a desorientar e mostrar as bifurcações sistemáticas que se estabelecem de modo misterioso e orgânico e se estendem para além de nossa compreensão, na relação de promiscuidade entre as esferas pública e privada, ao narrar o dia-a-dia de uma juíza de instrução severa e um tanto vaidosa (Isabelle Huppert), que, ao conduzir uma grande investigação de corrupção, prende como exemplo o CEO de uma companhia estatal acusado de sacar dinheiro da empresa para fins pessoais. Ele é, no entanto, uma pequena peça num esquema muito maior. Há também uma dúbia relação dela com outro funcionário graduado (Patrick Bruel), o que põe em jogo sua moral aparentemente ilibada. O título original, literalmente "intoxicação do poder", fornece uma chave importante ao tratar de deslocamentos de poderes, que aqui ocorre o tempo todo. O CEO, por exemplo, no pleno comando de seus funcionários, ao ditar ordens para sua secretária logo no começo, vê-se pouco depois saindo sozinho da cadeia, abandonado pelos comparsas e publicamente execrado, tendo uma alergia constante no pescoço como sua única companheira. Na mesa da juíza, humilhando dia a dia o executivo ao devassar detalhes de sua vida íntima e invadir a casa da família dele, atrás da mesa, por meio da papelada burocrática ou da exigência sistemática de que seu nome seja dito sempre completo, "Jeanne Charmant-Killman", exerce ela à sua maneira o poder. E se diverte, se "intoxica" por ele e se envaidece ao se ver como capa de revista, ainda que, aos poucos, vai percebendo que a corrupção estende seus tentáculos para dentro dos corredores e gabinetes do Palácio de Justiça, e ela também nada mais é que uma peça no joguete bem maior entre políticos e executivos, em que o dinheiro fala mais alto, sempre. Mais uma vez, o poder se desloca, foge ao seu controle. Em certo momento, quando é ameaçada, vira vítima também e, em seqüência-chave, no hospital vê-se na mesma posição que o executivo que mandou deter. Também em sua vida pessoal, há uma ambígua relação entre ela e o sobrinho, explorada por Chabrol da mesma forma que o misterioso envolvimento dos personagens cínicos de Huppert e Michel Serrault em Negócios à Parte (1997), e que termina por diminuir sua relação com o marido, outra vítima.

Rigoroso, sistemático, Chabrol não facilita, não oferece detalhes didáticos do esquema de corrupção e de como ele era operado, por exemplo. Expõe apenas e faz aqui um admirável trabalho para desorientar e frustrar o espectador no final das contas, sem oferecer soluções possíveis ou fáceis. Para isso, Huppert, brilhante e bela, plena de ambigüidades, é uma atriz essencial nesse "esquema".

segunda-feira, agosto 06, 2007

Duro de Matar 4.0

(Live Free or Die Hard/Die Hard 4.0, EUA, 2007)



O Duro de Matar da era Google, onde tudo, absolutamente tudo pode ser obtido na rede (até plantas de centrais elétricas! Por que não de centrais nucleares? Ou códigos de lançamento de mísseis?), desde que você tenha um PDA e links seguros com satélites obsoletos, nesta trama um tanto cansada, um “upload” de argumentos de outros filmes, em que, em pleno 4 de julho, terroristas virtuais assumem o controle de toda a infra-estrutura dos EUA, com a intenção de conseguir dinheiro. Muito dinheiro, claro. E para isso causam pânico, apagão, colapso, essas coisas, através de cliques no mouse. No meio do caminho, obviamente esbarram no incansável e “obsoleto” John McClane (Bruce Willis), a princípio encarregado apenas de escoltar até Washington um hacker (Justin Long) que deu a sua contribuição virtual para o plano dos bandidos. Mas só a princípio, num mundo onde analistas aparentemente têm muito mais poder que presidentes ou ex-presidentes, ao reforçar a crença das pessoas na imagem, ainda que sejam falsas ou tendenciosamente editadas, em duas seqüências-chave, dispersas no entanto diante da saraivada de balas e obviedades que crivam a narrativa.

Boas, mas pouco envolventes cenas de ação (que aqui não são todas digitais, ao contrário da trama), em história manjadíssima, com a típica irreverência de McClane soando forçada em relação às edições anteriores, e uma fotografia homogênea, conferindo ao filme um tom quase asséptico pelo insípido diretor Len Wiseman (Underworld, 2003). Movimentado, mas incrivelmente aborrecido, sobretudo pela sensação de déjà vu das explosões e perseguições (pouco) espetaculares e por conta da já bastante rotineira indestrutibilidade de McClane e da própria persona de Willis, que se confunde com a de personagens durões que interpretou em outros trabalhos, como O Último Boy Scout (1991) e 16 Quadras (2006), por exemplo. No fundo, ando mesmo muito aborrecido, mas deixa pra lá.

sexta-feira, agosto 03, 2007

A Síndrome da China

(The China Syndrome, EUA, 1979)



Uma repórter televisiva (Jane Fonda), cansada de cobrir eventos frívolos, é escalada de última hora para fazer um especial sobre energia numa usina nuclear da Califórnia. Com um técnico de som e um cameraman irascível (Michael Douglas, também produtor) presenciam uma falha que faz tremer as fundações do lugar, o que é rapidamente esclarecido pela direção como uma falha técnica corriqueira. Desconfiado de que se trata de algo ainda mais catastrófico, o cameraman filma às escondidas o incidente, registrando toda a tensão da sala de operações, achando, junto com a reporter, que ambbos têm em mãos um furo. Com a recusa da emissora em levar ao ar as cenas, ele rouba o material filmado e submete-o à análise de técnicos de uma universidade. Descobre que o reator estava prestes a vazar, condição negada a princípio pelo chefe de operações (Jack Lemmon), que, no entanto, constata sozinho que todo o material dos tubos de resfriamento do reator estava comprometido, com fissuras, por conta de análises forjadas para efeitos de maximização dos lucros e início rápido das operações. Alerta feito, alerta ignorado, como em Congonhas. Mas, como sempre, os donos da usina, que não podem perder mais dinheiro com a sua paralisação, decidem retomar as atividades a plena capacidade, mesmo sob o risco de uma eminente “síndrome da China”, ou seja, a exposição do núcleo do reator e a elevação de uma nuvem de altos índices radioativos sob a Califórnia, que contaminaria o país por anos e anos. Douglas, Fonda e, sobretudo, Lemmon, terão que agir por conta própria, mesmo que isso imponha riscos as suas vidas e carreiras.

Um filme militante, consistente, típico do final dos anos 70, a serviço de uma causa nobre, ecológica na aparência, mas essencialmente contra os lucros e a ganância daqueles que permitem que algo tão complexo e perigoso funcione em condições precárias e sob altíssimo risco, mesmo com todos os alertas, mais do que contra a energia nuclear, além de alfinetar a conhecida obtusidade da imprensa e de seus gurus editorais. É bem conduzido por James Bridges, ainda que sem a ironia e o sarcasmo de Sydney Lumet em Rede Intrigas (76), por exemplo, onde todo mundo era oportunista e comprometido. Aqui os personagens-heróis são mais idealistas, éticos, até Fonda, que, no fundo não passa de uma carreirista, mas que funciona, sobretudo, por conta do ótimo elenco, do realismo ao mostrar o dia-a-dia das operações, sem apelar para a câmera tremida, em cenas que não envelheceram, e dos momentos de tensão, especialmente nos instantes finais, quando Lemmon invade armado a sala de operações do local, tentando desesperadamente alertar as emissoras sobre o risco do acidente e parar com tudo. Porém, como não consegue esclarecer sem apelar para o jargão técnico acaba sendo tachado de louco, com trágicas conseqüências. Premonitório à época, por ter estreado poucos dias antes do acidente fatal com o reator de Three Mile Island, na Pensilvânia, não deixa de ser também mais um clássico comum à época sobre grandes sistemas a beira do colapso, como em O Enigma de Ândromeda, Colossus e Westworld, entre outros.

quinta-feira, agosto 02, 2007

Galante



Eu adoro o original Galante e Sangüinário (3:10 to Yuma, 1957), de Delmer Daves, com Glenn Ford e Van Heflin. É um dos meus westerns favoritos. Vamos ver o que sai dessa refilmagem dirigida pelo improvável James Mangold, de Johnny e June, Identidade e Garota Interrompida. Diretor genérico, em mais um filme que pode surpreender. O pôster ao menos é estiloso. E ainda tem o Russell Crowe. No aguardo.

Trailer: www.apple.com/trailers/lions_gate/310toyuma/

Demência

(Dementia – Daughter of Horror, EUA, 1955)



Um começo que lembra Edward Hopper e Whistler, um clima onipresente de pesadelo, confundindo o tempo todo realidade com sonho e que se estende pela madrugada noir de uma mulher perturbada, sexualmente reprimida, que parece ter cometido um crime, encontra um anão jornaleiro, é perseguida por um detetive que espanca um mendigo bêbado que a assedia, revê os pais e seu trágico passado num cemitério até o desfecho bizarro num clube de jazz, cercada o tempo todo por espíritos malignos sem rosto. Inventivo, psicanalítico, concentrado no uso expressionista da luz e das sombras, com cenários muito bem reaproveitados pelo diretor John Parker, em seu único trabalho, de A Marca da Maldade (um dos atores que aparece em cena deste filme sem diálogos lembra muito o Orson Welles, inclusive), é uma jornada fascinante e obscura de uma mulher perdida em seu próprio labirinto, contada somente por imagens, em cenas que remeteriam diretamente a Bergman, Limite, Ulmer, Polansky e até a David Lynch, ainda que involuntariamente. Como curiosidade, para quem viu a versão de 1958 de A Bolha Assassina, com Steve McQueen, este estranho filme aparece sendo exibido na seqüência de ataque da criatura gosmenta a um cinema. Ou seja, um cult já bem prematuro.

Rito de Amor e de Morte

(Yûkoku/Patriotism/Ritual of Love and Death/The Rite of Love and Death, Japão, 1966)



Um ritual de amor, outro de suicídio, num contexto nacionalista e moderno, mas que evoca tradições milenares da cultura japonesa. Em ambos os ritos, os amantes sem falar e ao som de Tristão e Isolda, de Wagner, se entrelaçam pelo falo, pela espada, neste filme curto, intenso e minimalista do escritor japonês Yukio Mishima (co-dirigido por Domoto Masaki), que também interpreta o oficial da Marinha Shinji Takeyama. Fiel às origens literárias, dividido em capítulos e com longas introduções escritas que expõem o contexto político tumultuado, após frustrada tentativa de golpe, Shinji retorna para a sua bela esposa Reiko (Yoshiko Tsuruoka), para praticar com ela o ritual de harakiri e morrerem com honra. Com poucos elementos em cena, apenas dois atores, quase estáticos e “extáticos”, emulando o teatro Nô, o filme explora, sobretudo, a intensidade dos olhares trocados entre ambos, especialmente os de Keiko, tanto na cena de amor quanto na hora da morte, mostrada com rigor ritualístico e detalhes explícitos. Poético na construção das imagens em preto-e-branco, uma espécie de prefiguração do suicídio do próprio e polêmico Mishima, encenado alguns anos depois e que seria revisitado por Paul Schrader no belo Mishima – Uma Vida em Quatro Capítulos (1985). Raro e inesquecível.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Baila Comigo

(Marilyn Hotchkiss Ballroom Dancing & Charm School, EUA, 2005)



Lições de dança, lições de vida, na história de um padeiro (Robert Carlyle) que socorre um acidentado (John Goodman, ótimo) na estrada e, enquanto seguem para o hospital, este lhe conta, em vários e emotivos flashbacks, para onde estava indo e o motivo. Marcara naquele dia um encontro firmado há 40 anos na então célebre escola de dança de Marilyn Hotchkiss, com o seu primeiro amor de infância. Atendendo ao desejo dele, o padeiro, traumatizado com o inesperado suicídio da esposa, decide comparecer ao encontro. E passa a freqüentar as aulas de lá. E a gostar. E até se apaixona por uma das alunas (Marisa Tomei, sempre adorável), mesmo com os ciúmes do agressivo meio-irmão dela (Donnie Walhberg). Apesar de convencional e da mensagem um tantinho óbvia, do tipo quarentões redescobrindo a alegria de viver por meio da dança, com direito a transa na cozinha em cima da farinha da massa de pão, um filme simpático e, às vezes, nostálgico e bem-humorado de Randall Miller que, por conta do elenco de estrelas, como Mary Steenburgen, Marisa Tomei, Sonia Braga, Sean Astin, Danny DeVito, etc., assiste-se com prazer. E Robert Carlyle, o típico operário escocês estouradaço, está aqui surpreendemente elegante. Quase um lorde, embora eu goste mais dele dançando em The Full Monty (1997).

Shall We Dance?



Anna Karina, Claude Brasseur e Sami Frey na célebre dança de Bande à Part (1964), de Jean-Luc Godard, cena homenageada por Hal Hartley em Simples Desejo (1992), entre outros.