segunda-feira, abril 30, 2007

Mstislav Rostropovich (1927-2007)



O maior violoncelista da segunda metade do século XX, insuperável na sonoridade aveludada que imprimiu ao instrumento. Mais informações abaixo:

Violoncelista Rostropovich morre aos 80

Debilitado pela luta contra o câncer, músico russo, que teve amplo reconhecimento em vida, também foi regente e pianista

Em suas visitas ao Brasil, o maior violoncelista do pós-guerra costumava trazer maleta cheia de bebidas alcoólicas

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Reconhecido como o maior violoncelista do pós-guerra e também como o mais destacado ícone musical russo da atualidade, Mstislav Rostropovich (pronuncia-se "rostropóvitch") morreu sexta no Centro Oncológico de Moscou.

Slava (hipocorístico de Mstislav), como era conhecido, havia feito sua última aparição pública em 27 de março, no concerto de gala que celebrou seu 80º aniversário. Debilitado pela luta contra o câncer, não teve condições de tocar, mas foi tratado pela mídia como lenda viva - ao longo de toda a semana, a TV russa exibia documentários e concertos do musicista, muito embora suas promessas de não mais tocar no país devido a algumas críticas desfavoráveis que recebera na imprensa tenham diluído a unanimidade de que antes desfrutava.

Rostropovich nasceu em Baku, capital do Azerbaijão, em uma família musical: o pai, Leopold, era um menino-prodígio do violoncelo, aluno do legendário catalão Pablo Casals, enquanto a mãe, Sofia, atuava como pianista acompanhadora.
Para dar melhores condições de aprendizado a Slava, a família se mudou para Moscou, em cujo conservatório Rostropovich seria aluno e, posteriormente, professor. Nos anos 50, ele estava, ao lado de monstros sagrados como David Oistrakh (violino) e Sviatoslav Richter (piano), entre os nomes que a URSS permitiu que viajassem ao exterior para maravilhar os ocidentais com sua excelência.

Sob regência de Herbert von Karajan, os três fizeram uma gravação que marcou época do "Concerto Tríplice", de Beethoven. E a performance que Rostropovich fez com Richter das sonatas para violoncelo e piano de Beethoven, no festival de Aldeburgh, no Reino Unido, em 1964, atualmente disponível em DVD, permanece como um documento dos milagres de precisão, espontaneidade e calor de que aquela geração de músicos russos era capaz.

A excelência técnica não era pequena. Enquanto os braços obedeceram seu comando, Rostropovich foi capaz de emitir um som vigoroso e cheio em todos os registros do instrumento. A afinação era precisa e imaculada, enquanto a técnica permitia-lhe percorrer todos os degraus da escala dinâmica, mesmo quando tocando em "pízzicato" (beliscando as cordas, sem a utilização do arco).

Pianista e acompanhador
Casou-se, em 1955, com a maior estrela do Teatro Bolshoi daquela época, a soprano Galina Vishnevskaya. Ao lado da esposa, desenvolveu habilidades de sensível pianista acompanhador; e também começou a reger -como maestro, era louvada sua expressividade, embora a precisão não fosse a mesma que ele obtinha ao violoncelo.
De gosto eclético e interessado em música contemporânea, Rostropovich contribuiu decisivamente para a ampliação do repertório de seu instrumento. Amigo de compositores, estreou obras de Prokofiev, Chostakovitch, Lutoslawski, Penderecki, Britten, Berio, Bernstein e outros. O argentino Astor Piazzolla escreveu uma peça para ele - "Le Grand Tango".

Mas suas amizades estavam longe de se restringir ao mundo da música -e incluíam o vencedor do Prêmio Nobel Aleksandr Sojenítsin, que denunciara as mazelas do regime soviético em livros como "Arquipélago Gulag" e "Um Dia na Vida de Ivã Denissovitch".
Tendo acolhido o escritor em sua casa de campo, o músico escreveu, em 1970, uma carta aberta à imprensa soviética, em defesa do amigo. Embora não publicada, a missiva causou problemas políticos ao violoncelista, que acabou tendo que deixar o país em 1974, para ter sua cidadania cassada em 1978.

No Ocidente, virou regente titular da Orquestra Nacional de Washington, em 1977, à frente da qual permaneceria até 1994. Reabilitado pela "perestroika" de Mikhail Gorbatchov, voltou a tocar em sua terra natal em 1990 -em agosto do ano seguinte, com grande estardalhaço, fez-se fotografar em Moscou, empunhando um fuzil Kalashnikov, em apoio a Boris Iéltsin, contra a malograda tentativa dos comunistas de retomarem o poder.

No Brasil, esteve várias vezes, como violoncelista e como regente, trazendo a tiracolo a maleta cheia de garrafas de bebidas alcoólicas que era uma de suas marcas registradas. Estava no Rio, em 1994, quando a seleção brasileira voltou da vitoriosa campanha na Copa do Mundo dos EUA. Em conseqüência, em sua apresentação no Teatro Municipal, subiu ao palco enrolado na bandeira do Brasil, recebendo uma das mais consagradoras ovações que aquela casa já presenciou.

(Folha de SP, 28 de abril de 2007)

Miss Potter

(Miss Potter, EUA/Reino Unido, 2006)



Antes de Harry Potter, Miss Potter...

Um pouco como no filme Em Busca da Terra do Nunca (2004), uma biografia “ilustrada” de Beatrix Potter (Renée Zellwegger), autora e ilustradora de livros infantis, responsável pela adorável série protagonizada por Peter Rabbit e outros animaizinhos simpáticos. Sem tanto o peso sentimental do filme de Marc Foster, mas com charme literário tipicamente britânico, recupera um pouco da atmosfera repressora da Inglaterra vitoriana, ao narrar em flashback e com toques de fantasia a história da imaginativa personagem-título enquanto solteira, aos 32 anos, lutando para se manter independente em meio às pressões da mãe esnobe para que se case logo com algum nobre de família rica e tenha uma vida respeitável como esposa, mãe e dona-de-casa, sobretudo. As coisas começam a mudar quando vê seu primeiro livro ser publicado. Com o sucesso, estreita seus laços com o jovem editor Norman Warne (Ewan McGregor). Outros livros virão, além de um pedido de casamento deste, prontamente recusado pelos pais dela. Mas uma reviravolta mudará seus planos e até suas atitudes políticas. Não muitos conflitos, mas a boa química entre McGregor e Zellwegger (que juntos protagonizaram Abaixo o Amor, 2003), mais Emily Watson como a irmã independente de McGregor, e as boas animações dos bichinhos, que saltam das páginas quando Potter conversa com eles, garantem o interesse por este filme elegante de Chris Noonan (Babe – O Porquinho Atrapalhado, 1995) e que tem lá seus encantos em seu breve e não muito ambicioso recorte narrativo, mas que serve de boa introdução para se conhecer melhor o universo dos livros da autora.

sexta-feira, abril 27, 2007

Hannibal – A Origem do Mal

(Hannibal Rising, EUA/Reino Unido/França, 2007)



Antes de fritar os miolos de suas vítimas para dá-los de comer a elas mesmas, espetinhos de bochechas humanas com cogumelos selvagens, assados e saboreados em plena floresta lituana. Nouvelle Cuisine, com tempero rústico. Ainda sem o Chianti, no entanto.

A gênese de um monstro, mas de atitudes refinadas e fala suave, típicas de sangue azul europeu degenerado. Também, pudera, Hannibal Lecter é filho de nobres lituanos mortos na guerra durante a ocupação nazista, quando criança. No entanto, ele e a sua frágil irmãzinha, numa cabana na floresta, diante de escombros, sobrevivem penosamente. Ele a protege, sempre. Um dia, saqueadores lituanos (e ex-colaboradores dos nazistas) em fuga, se refugiam no lugar e os mantêm reféns. A comida, que era pouca, torna-se inexistente no rigoroso inverno soviético. Resta aos bandidos, para se manterem vivos, fazer o que os comunistas faziam de melhor. Ou seja, comer as criancinhas. Literalmente. Hannibal então verá a sua irmã Mischa ser levada para a panela. Mesmo assim, consegue ser salvo de ser comido e crescerá num orfanato, agora sobre a tutela dos soviéticos. É maltratado, pouco fala e bloqueará o trauma, restando dele apenas imagens esparsas, que aparecem em flashes macabros durante noites de pesadelo. Até que um dia escapa do lugar, indo viver com a sua tia, a oriental Lady Murasaki (Gong Li), na França, onde estudará Medicina. Porém, não desistirá de perseguir seus algozes. Enfim, uma trama de vingança que serve para Hannibal, aos poucos, sedimentar e requintar seus métodos, cada vez mais sangrentos, incluindo aí o canibalismo, a frieza e, principalmente, a falta de culpa após cada assassinato perpetrado. E ao som das Variações Golberg, de Bach, como toque fino.

Parte da narrativa já esboçada num capítulo do livro grand guignol Hannibal, de Thomas Harris, que atua como roteirista nesta produção bem acima da média, inclusive nas ambientações e nos detalhes. Ou seja, até que fiel ao espírito do personagem, apesar da mecânica psicanalítica da trama, de procurar a origem do mal do Hannibalzinho num trauma de infância. E de justificar o despertar da besta que dormia dentro dele por causa de um evento sempre extraordinário em sua brutalidade como a guerra, ou após ela, tal como é mostrado numa cena metafórica, em que um javali escapa da cabana abandonada, quando Hannibal a revisita. Ou, então quando recupera as jóias da família de dentro da boca de um urso empalhado. Requinte e bestialidade, sempre.

Mesmo com as más críticas, um filme bastante razoável e elegante, do improvável Peter Webber (do artsy fartsy A Moça com o Brinco de Pérola, 2003), desde que não se insistam em comparações com os outros da série. Deu para assistir e saborear esta preqüela, ainda que sem um Chianti, que, acho, desceria melhor no filme de Ridley Scott, Hannibal (2001). Em suma, não me aborreceu, e até o protagonista, o também improvável Gaspard Ulliel (Eterno Amor, 2004), que tem um rosto que lembra a máscara de V, de V de Vingança (2005), convence em sua fragilidade só esboçada, como os desenhos que faz. Além, claro, da beleza de Gong Li.

quinta-feira, abril 26, 2007

A Última Cartada

(Smokin' Aces, EUA, 2007)



Guy Ritchie e Tarantino. Canos fumegantes, cartas de baralho, traições e péssima pontaria, o que justifica alguns indivíduos difíceis de morrer, no confronto entre matadores nazistas, caçadores de recompensas, duas Foxxy Ladies letais, agentes do FBI, mafiosos e hitmen habilidosos no uso de armas contundentes ou mestres no disfarce na enlouquecida disputa pela cabeça (e pelo coração, também) de Buddy “Aces” Israel (Jeremy Piven), famoso ilusionista que, em busca de mais ação, usou sua influência junto à máfia em Las Vegas, galgou postos e poder no submundo, até decidir entregar o chefão da Cosa Nostra, Primo Sparazza (Joseph Ruskin), para os federais. Primo então lança uma recompensa de 1 milhão de dólares para quem der cabo em Israel e trouxer o coração dele, sobretudo. O FBI, liderado por Andy Garcia, o quer vivo, pois seria uma testemunha-chave no desmonte definitivo da Cosa Nostra. Israel é, então, mantido vigiado num hotel de luxo em Lake Tahoe, Nevada, com direito a drogas e as melhores e mais briguentas prostitutas. E é para lá que rumará a horda de assassinos, tal com em Deu a Louca no Mundo (1963), numa disputa para ver quem chega primeiro. Dois agentes do Bureau (Ryan Reynolds e Ray Liotta), pobrezinhos, correm para impedir a matança. Mas antes têm que tomar um elevador. E que elevador! Inevitavelmente, entrarão em confronto com os matadores, tipos dos mais insanos, como uma gangue demente neonazi conhecida como The Tremors, e que também brigarão entre si, num desenlace pra lá de sangrento, envolvendo balaços, hipotermia, dedos decepados, moleque judoca white-trash hiperativo, serras a motor descontroladas, essas coisas, neste adrenalínico filme de Joe Carnahan (do sombrio Narc, 2002), de cortes acelerados, enquadramentos inusitados, alguns diálogos certeiros ou estapafúrdios, estética de um colorido tutti frutti e que arremessa o tempo todo inúmeros elementos a mil por hora, mas que aos poucos vão fazendo sentido, até a reviravolta final, muito bem orquestrada e que, em todo o seu divertidíssimo percurso, traz ainda pequenas participações de caras conhecidas, como as de Ben Affleck, Martin Henderson, Alicia Keys (foto) e Peter Berg. Mesmo que seja apenas para dar cabo em todos eles, em meio a uma piadinha ou outra. Um alento este filme, em que os excessos se justificam plenamente, no final das contas.

quarta-feira, abril 25, 2007

Vermelho Como o Céu

(Rosso Come il Cielo, Itália, 2006)



São Paulo. Aquele pôr-do-sol róseo que é belo e único por causa da poluição da cidade. Estranho calor de outono. Terça-feira e o habitual trânsito de final de dia. De qualquer hora do dia, na verdade. Ou seja, Hell on Earth. As usual. E a certeza de que, preso ali, sem qualquer possibilidade de sair do lugar, de me mover no ônibus lotado, de gritar, perderia a sessão deste filme e, pior, de que furaria com a Alê, o que seria ainda mais imperdoável, pois o filme poderia ver outro dia. Então vem a angústia. E o desespero. Felizmente, tudo começou a andar, ainda que bem devagarzinho. Felizmente consegui chegar na bilheteria do Reserva Cultural. Em cima da hora, claro. Infelizmente uma fila que não andava de jeito nenhum. Felizmente uma transitória queda de energia que atrasaria o início da sessão. Infelizmente a fila que continuaria a não andar. E lá fui eu, contra a minha maneira habitual de agir, passar na frente de três senhores com seus demorados cartões de débito e dificuldades em localizar o RG, a fim de garantir o meu ingresso. É claro que pedi para eles, quase que obrigando-os a ceder. É claro que as sessões para os filmes que escolheram seriam posteriores a minha. Então qual era o problema, fora alguns cenhos grisalhos franzidos? Assim, com certo atropelo, felizmente comprei o ingresso, entrei na sala ainda nos trailers, encontrei com a Alê e bem a tempo de assistirmos juntos a este belo filme italiano. E desde o comecinho. Felizmente.

Um pouco como no Neo-Realismo italiano na maneira de captar as crianças nas brincadeiras e no seu modo todo particular de perceber o mundo, narra a história real de um menino toscano, Mirco (Luca Capriotti), de dez anos, que, após perder a visão no disparo acidental de uma espingarda em casa, é mandado compulsoriamente para uma escola especial (e católica) em Gênova, já que a lei italiana não permitia que alunos deficientes dividissem a sala de aula com alunos considerados “normais”. Na verdade, um internato profissionalizante para cegos, comandado por um severo diretor também cego e que não almejava grandes horizontes para seus alunos, forçando-os a um aprendizado de funções repetitivas, somente. O que era nítido vira vultos e borrões, como a imagem dos pais vista na despedida pela janela. Vira em seguida a escuridão total. Longe da familia, privado do cinema, da escola normal e das brincadeiras infantis, aos poucos, e não sem conflitos, Mirco vai se adaptando à nova condição. E assim, tateando e auscultando aqui e ali, começa a “enxergar” com os outros sentidos, sobretudo com a audição. E assim também, na surdina, com a ajuda de uma menina (Francesca Maturanza) e de um amigo da escola, cego desde o nascimento (Simone Gulli), passa a gravar os sons da natureza e a editá-los. Mais tarde, como bom autodidata e com o apoio de um padre bondoso, dará a eles uma forma narrativa, com personagens de contos de fada, contando ainda com a ajuda de outros garotos da escola, como se produzisse uma radionovela, apesar da rigidez quase incontornável do diretor.

Momentos encantadores a cargo sobretudo do formidável elenco infantil, dirigido com sensibilidade por Cristiano Bortone, e um desfecho emocionante, definitivamente honrando a boa tradição do cinema italiano em sua essência humanista. E política também. Edificante, mas não no sentido apelativo, de ser apenas um filme de superação daqueles bem sentimentais, embora os sentimentos aqui não deixem de aflorar no final das contas. Mas naturalmente conduzindo às lágrimas sinceras com seu estilo simples, direto e humanamente provável. Também uma ode ao cinema e à maneira autodidata de apreender, de descobrir o mundo (e de representá-lo) com os próprios olhos, mesmo que não seja possível enxergar com eles. E sem apelar para as boas intenções ou para um triunfalismo all'americana. Felizmente.

terça-feira, abril 24, 2007

Últimos Dias

(Last Days, EUA, 2005)



Inspirado diretamente nos últimos dias de Kurt “Nirvana” Cobain, vagarosamente caminha este drama crepuscular de Gus Van Sant (Gênio Indomável, 1997, Elefante, 2003), que traz Michael Pitt como Blake, líder de uma banda grunge famosa, vagando pela floresta ao redor de sua casa, em meio a colegas largados e interesseiros, nadando, mijando, cavando buracos, fingindo-se de caçador, vestindo-se de mulher, preparando macarrão instantâneo, vendo clipes na MTV, recebendo esparsas visitas, fugindo dessas visitas, como os mórmons (aqui um trocadilho com os últimos dias do título), compondo as últimas canções, indo a um show e enfim morrendo. Um clima de despedida o tempo todo no ar. De longe, a câmera de Van Sant, em longos planos-seqüência, acompanha seus amigos e ele, sobretudo, moribundo sempre, indiferente a tudo e a todos. Não há tanto assim a mostrar, mas alguma poesia inesperada acaba emanando disso. Tanto distanciamento que, no final, acabou me deixando, à maneira da tal Geração X retratada no filme, um tanto indiferente ao que foi mostrado. Ainda assim, um trabalho autoral, digno, que tem seus momentos de beleza, como na cena final, e que não procura fazer concessão alguma ao permear o filme de tempos mortos e uma monotonia onipresente, sem ordenar clichês comuns a filmes supostamente baseados em fatos reais.

Inferno

(L’Enfer, França/Bélgica/Itália/Japão, 2005)



Depois do Paraíso (2001), de Tom Tykwer, o Inferno, segundo capítulo do tríptico Inferno/Purgatório/Paraíso, vagamente baseado na Divina Comédia de Dante, deixado em esboços por Krzysztof Kieslowski, ganha aqui, nas mãos do bósnio Danis Tanovic (Terra de Ninguém, 2001), uma versão mais próxima do que teria imaginado o mestre polonês, sobretudo no uso das cores, com o vermelho onipresente, na melancolia emanada pelas personagens femininas, nos vários indivíduos que são apresentados soltos e por alguma razão, em geral sombria, tem suas vidas interligadas no final. Até uma velha senhora, que na Trilogia das Cores tentava empurrar uma garrafa para dentro do lixo reciclado, reaparece, como se o diretor reverenciasse Kieslowski ipsis litteris. A princípio, frio e distante, cresce à medida que vai sendo narrada a melancólica estória de três irmãs, cada uma delas mergulhada num inferno pessoal ligado, sobretudo, à rejeição amorosa. Uma, solitária e insone, Cécile (Karin Viard), que cuida da mãe (Carole Bouquet), enferma e que não fala, em periódicas visitas ao asilo, nota que está atraindo a atenção de um estranho (Guillaume Canet). Outra, Sophie (Emmanuelle Béart, sempre bela), descobre que seu marido, um fotógrafo de moda, está tendo um romance com uma de suas assistentes. E a caçula, Anne (Marie Gillain), após um caso em que engravida, se vê abandonada por Frédéric (Jacques Perrin), seu professor na universidade, casado e pai de sua amiga. Não desistirá dele, no entanto. Até então sem se verem, uma trágica revelação ligada ao pai no passado as reaproximará. Três belas atrizes em imagens que se multiplicam como num caleidoscópio, acentuando as angústias e aflições que, mesmo no final, ainda persistem traiçoeiramente. O inferno mesmo é sofrer por amor, dentro ou fora da família.

segunda-feira, abril 23, 2007

Motoqueiros Selvagens

(Wild Hogs, EUA, 2007)



O Sem Destino dos caras em crise de meia idade e em plena era de American Chopper. Ou seja, rebeldia de mentirinha na estória dos quatro caretões (vividos por John Travolta, William H. Macy, Tim Allen e Martin Lawrence) que decidem dar um tempo em suas vidas monótonas ou sem perspectivas e saem de moto pela América, revivendo os bons tempos como os Wild Hogs (ou "javalis") do título original. Sem esposas, sem celulares, sem calças e, em determinado momento, sem combustível, enfrentarão ainda uma gangue de motoqueiros barra pesada, liderada por Ray Liotta, repetindo as mesmas caretas que o tornaram conhecido em Os Bons Companheiros (1990). Tudo sem muita graça também, pois não há química entre os quatro protagonistas. Se fossem buddies de longa data, nadariam peladões na cachoeira sem o menor problema. Não parecem buddies. William H. Macy, no entanto, se sobressai mais uma vez como o eterno loser, aqui à procura de um amor, que encontrará na adorável garçonete de uma cidadezihha, vivida por Marisa Tomei, neste filme dirigido sem muito entusiasmo por Walter Becker e que, mesmo assim, tornou-se um inesperado sucesso de bilheteria nos EUA. Conta ainda com a aparição de Peter Fonda, o eterno "easy rider", no finalzinho. Sem rumo, no entanto.

sexta-feira, abril 20, 2007

Labor ubique est (o trabalho está em toda parte)

Para todos que se encontram consumidos pela lida insana de cada dia, sem tempo para nada, lembrem-se do velho e sábio dito popular que diz que "a rapadura é doce, mas não é mole, não".

E lembrem-se também de que ninguém é obrigado a comê-la.

Tenham todos um ótimo fim de semana. E sem rapadura.

Maria

(Mary, EUA/Itália/França, 2005)



A fé que vai e vem neste tumultuado mundo moderno, onde aparentemente não há mais espaço para ela, a não ser para egos, e onde religião muitas é confundida com fanatismo. É de aparência, sobretudo, que trata este filme de Abel Ferrara, em que uma atriz, Marie Palese (Juliette Binoche, bonita e lacrimosa), após interpretar Maria Madalena no polêmico filme sobre a vida de Cristo, “Esse é Meu Sangue”, do chatíssimo diretor e ator Tony Childress (Matthew Modine), e que traz Madalena como centro das discussões teológicas, relegando os apóstolos a um segundo plano, tem uma epifania, larga tudo e passa a peregrinar como Madalena pela conturbada Terra Santa. Tempos depois, na época do lançamento da produção em Nova Iorque, o diretor é convidado pelo apresentador Ted Younger (Forest Whitaker), que entrevista teólogos, padres e historiadores sobre o cristianismo, para se juntar ao debate no seu programa televisivo semanal. Será duro com ele. Ao mesmo tempo, Ted, cuja mulher (Heather Graham), solitária, está grávida, mantém um affair com uma produtora (Marion Cotillard). Um dia, sua esposa passa por complicações. O bebê nasce prematuro e, frágil, corre riscos. Ted, até então cético, volta-se para Deus, obviamente. Ao mesmo tempo, tensões e ameaças de atentado tumultuam a première do filme de Childress, para seu desespero. Mas não era o que queria? Fazer barulho? Chamar a atenção? Bem feito.

Conduzido por desgastados debates religiosos, fica apenas na aparência. Não produz nenhum milagre, nenhuma epifania. É apenas monótono quando se quer polêmico, profundo ou religioso, no sentido de “religare”, religar Criador com a criatura, quando não pretensioso do início ao fim, embora explore bem as locações em Israel e Forest Whitaker esteja fantástico, como sempre. Grande ator. Filme, menos, menos.

Agora, as pedradas.

Homicídio

(Homicide, EUA, 1991)



Uma investigação (mal)conduzida pelo FBI, à procura de um traficante e assassino negro (Ving Rhames), resultará em tiroteios, mortes e truculência. Menos na prisão do suspeito. Por isso, a prefeitura decide tirar o FBI do caso e retorná-lo à polícia. Dois policiais experientes da Divisão de Homicídios, Bobby Gold (Joe Mantegna) e Tim Sullivan (William H. Macy), são escalados. No caminho para deter uma testemunha importante, deparam-se por acaso com o assassinato de uma velha senhora judia. Gold, calejado negociador de origem israelita, mas há muito afastado do judaísmo, acaba sendo escalado para este novo caso, a contragosto. À medida que se aprofunda nas investigações, se deparará com suas raízes judaicas, sua identidade, sua condição de eterno estrangeiro no mundo dos brancos e cristãos (goyim). Americano? Nem tanto. Descobrirá também uma organização secreta sionista que combate neonazistas. É convocado a colaborar com ela. Mas, para isso, terá que trair seu juramento como policial. Entre o dever e a identidade, naturalmente, entrará em conflito. Mas não desistirá também de capturar o traficante negro, tornando as coisas mais tensas e ainda mais angustiantes para ele.

Um filme à maneira de David Mamet: sólido, com uma trama de reviravoltas que é mero pretexto para o protagonista questionar sua identidade, para desconfiar o tempo todo do que é mostrado como evidência de verdade alguma, com diálogos incisivos, duros, agressivos, que enfatizam frases e palavras de ordem repetidas o tempo todo, clima noturno e sólidas interpretações de Joe Mantegna (As Coisas Mudam, Jogo de Emoções) e William H. Macy (Oleanna, Mera Coincidência, Spartan, Edmond), habituais colaboradores de Mamet. Outras caras conhecidas de filmes de Mamet, como sua esposa Rebecca Pidgeon e o ator (e mágico) Ricky Jay, também marcam presença em papéis pequenos, mas importantes. No final das contas, neste mundo de relações perigosas, aparências se revelam enganosas e identidades, escorregadias, num dos melhores trabalhos de Mamet como diretor.

Visto num DVD vendido nas bancas e que traz ainda, na mesma edição, o claustrofóbico American Buffalo (96), de Michael Corrente, baseado em peça de David Mamet.

quinta-feira, abril 19, 2007

O Novo Mundo

(The New World, EUA, 2005)



Ao som da abertura da ópera O Ouro do Reno (Das Rheingold), de Richard Wagner, a América surge para os ingleses da pequena esquadra liderada pelo justo capitão Newport (Christopher Plummer). E os ingleses surgem diante do olhar estupefato dos nativos da costa da Virgínia e sua civilização cercada pelas águas. Aliás, água é o elemento que abre e que fecha o filme. Na Virgínia, serão erguidas as paliçadas de Jamestown, a primeira vila norte-americana. E no porão do navio, o rebelde John Smith (Colin Farrell), mantido prisioneiro, vê a América pelas grades e frestas. No novo mundo, busca um novo começo. Salvo do enforcamento, é libertado para conduzir uma missão de exploração em busca de alimentos rio acima. Será capturado pelos selvagens e, salvo mais uma vez, se envolverá com a filha do chefe da tribo dos Powhatan, conhecida no mito original como Pocahontas (Q'orianka Kilcher), embora o nome dela nunca seja dito ao longo do filme. Entre os dois, momentos de amor intenso, delicado, unindo seres de mundos opostos. Mas o amor que os une os separará. Em certa feita, ela ajudará os ingleses famintos, à revelia do pai. Surgia o dia de Ação de Graças. Mas os nativos os atacarão. Propõem um acordo. Smith, como líder da vila, recusará a mantê-la prisioneira a fim de estabelecer a paz. Banido, partirá para a Inglaterra e para explorar novos horizontes, como a passagem para o outro oceano. Ela, de coração partido, e também renegada pela tribo, se casará mais tarde com o bondoso fazendeiro John Rolfe (Christian Bale), com quem terá um filho. Descobrirá o velho mundo, na histórica audiência com o Rei James da Inglaterra, onde será recebida como uma princesa. A princesa do Novo Mundo. Mas ainda terá Smith na memória.

Pelo ritmo sereno das águas do rio na Virgínia é conduzido este magnífico e contemplativo filme de Terrence Malick, apenas seu quarto trabalho como diretor, numa carreira de mais de 30 anos, e que descortina paisagens e horizontes como se fossem mostrados pela primeira vez. Aqui, mito, civilização e história se entrelaçam, harmonizados pela música de Mozart e Wagner e pelos monólogos interiores, em que os personagens refletem poeticamente sobre essa efêmera harmonia, num paraíso povoado por seres onde o equilíbrio é sempre delicado, quando não impossível, marcas registradas dos filmes de Malick (Além da Linha Vermelha, 1998), assim como a onipresença da natureza. Pouco provável que os dois tivessem tido tal romance. Não importa. No final das contas, o mito se impõe pois, como diria Fernando Pessoa, o “mito é o Nada que é Tudo”. E assim nascia a América.

Revisto na telona do CineSesc, um esplendor, ainda que prejudicado pelos cortes impostos pela New Line, que deixa algumas cenas truncadas, sobretudo na transição entre elas. Espero revê-lo novamente na versão mais completa, lançada em DVD nos EUA. Ou tantas vezes quanto for preciso. É tanta beleza que não basta um único olhar. Mas beleza nunca acessória ou superficial. Beleza das obras-primas da pintura, que aqui se consubstanciam em inesquecíveis imagens em movimento.

quarta-feira, abril 18, 2007

Eu tenho a Força



Policial civil exibe espada medieval apreendida durante ocupação ao complexo do Pavão-Pavãozinho, no Rio de Janeiro, em mais um dia de confronto entre policiais e traficantes. Em breve, paus e pedras. Depois, somente o pó. Essa é a alma brasileira.

Agente Triplo (e mais Rohmer)

(Triple Agent, França/Rússia/Grécia/Espanha/Itália, 2004)



O homem que sabia demais, que achava que trazia em si uma idéia de onipotência, imaginando que conseguiria manipular o destino. Ou nem tanto, neste filme tipicamente rohmeriano, que engendra certezas na boca dos personagens principais para depois desmenti-las, criando descompassos entre o que é dito, o que é imaginado e o que ocorre de fato. E onde o acaso acaba sempre desempenhando um papel decisivo, no final.

Aqui, num registro histórico, pouco antes da Segunda Grande Guerra, Eric Rohmer, com impressionante vitalidade, narra a história real de um general soviético, ou melhor, russo, Fiódor Voronin (Serge Renko), um branco dissidente após a Revolução de 1917 e refugiado com a sua bela esposa grega, a pintora de quadros realistas Arsinoé (Katerina Didaskalou), na Paris de 1936, da recém-eleita coalizão socialista da Frente Popular. Apesar do clima vermelho no ar, não esconde o que faz de ninguém, ao deixar claro, em encontros sociais, que trabalha para uma associação de russos brancos, também de militares expatriados do antigo regime czarista. É franco também com seus vizinhos comunistas, que poderiam ser espiões soviéticos a serviço da máquina paranóica stalinista. Porém, não fica tão claro assim, ao longo do filme, para qual grupo trabalharia de fato, agindo de forma tão ambígua e misteriosa que surpreende até a sua esposa. Poderia trabalhar para os contra-revolucionários, para os soviéticos e até para os nazistas. Poderia ser somente um ingênuo, também. Daí, o agente triplo do título. Tensões se avolumam, ainda mais num contexto de emergência dos regimes totalitários, comunista e fascista, que mais tarde se convergeriam, no infame pacto alemão-soviético, além da Guerra Civil Espanhola e das greves que marcariam os meses iniciais da administração da Frente Popular, vistas por meio de cinejornais reeditados aleatoriamente pelo próprio Rohmer e que entremeiam a narrativa, situando-a historicamente.

Mês a mês, toda a ação é conduzida por meio de longas conversas, à maneira de Rohmer, em que a palavra falada e somente ela instaura mundos. É fascinante, por exemplo, quando o general narra a sua esposa o suposto seqüestro de um compatriota num carro, usando apenas os dedos e uma pasta para descrever toda a cena, indo na contracorrente dos cineastas mais convencionais e moderninhos, que certamente prefeririam optar por um expediente mais comum, como o flashback com imagens, a narração reconstituindo toda a cena e o uso invasivo da trilha sonora. Mundos escorregadios estes da fala, no entanto, deixando no ar sempre a incerteza no final das contas. No meio de tudo, excelentes discussões sobre arte realista e as vanguardas, banidas da União Soviética, que tornara-se conservadora neste aspecto, e em outros também, apesar do caráter revolucionário de seu governo. Tudo registrado com um mínimo de elementos, o que não deixa de ser surpreendente a cada instante, em que nada parece acontecer, quando tudo está acontecendo. Rohmer é de fato um mestre. E um prazer.

terça-feira, abril 17, 2007

Encore Rohmer




Em maio, nas lojas e locadoras mais quatro esplêndidos títulos de Eric Rohmer, agora da série Comédias e Provérbios: A Mulher do Aviador (81), Um Casamento Perfeito (82), Pauline na Praia (83) e Noites de Lua Cheia (84). Mas lembrem-se: os provérbios que aparecem no começo de cada filme foram todos inventados pelo diretor.

Sunshine – Alerta Solar

(Sunshine, Reino Unido, 2007)



Uma nave ruma não em direção ao infinito escuro do espaço, mas à claridade absoluta, que é tão misteriosa e fascinante quanto. E gera efeitos horripilantes em quem a contempla demoradamente.

Num futuro não muito distante, o sol está morrendo e, com ele, toda a vida do planeta Terra. Uma missão tripulada, apropriadamente denominada Ícaro, é enviada à estrela para fazê-la “reacender” por meio de bombas nucleares. Desaparece. Anos depois, uma outra nave, Ícaro II, em forma de um grande guarda-chuva, parte para lá com o mesmo propósito. Encontra a outra nave à deriva. Os tripulantes decidem resgatá-la. E sabotagens variadas e estranhas perturbações passam ocorrer entre eles, comprometendo a missão, a segurança de todos e o futuro do planeta. Aqui, importa menos a trama ecológica e com viés esperançoso, atípico da carreira do diretor Danny Boyle, e mais o confinamento dos personagens, colocados em situações-limite e que começam a se autodestruírem, decidindo quem vive e quem morre, da mesma forma que em Cova Rosa (94), Trainspotting (96) e Extermínio (2002). Isso e mais os bons efeitos especiais, que dão ao filme um visual de tons ora azulados, ora amarelados e que vão modulando um magnífico balé de luzes, apesar da frieza das interpretações, garantem o interesse por este filme de andamento cadenciado, contemplativo, e que recicla idéias de 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968) e Solaris (1972), mas que lembra um pouco também O Enigma do Horizonte (1997), de Paul W.S. Anderson.

E no final, parece dizer o diretor, junto com o roteirista Alex Garland, seu parceiro habitual, que o planeta pode ser revivido, mas a capacidade dos indivíduos de entrarem em acordo é sempre mais remota, sempre improvável, sempre mais difícil, quando não inútil, ainda mais quando, mergulhados no infinito do espaço, contemplam sua própria finitude, sua pequenez, o retorno ao pó, à poeira espacial, diariamente, durante os anos em que dura a missão.

segunda-feira, abril 16, 2007

Ventos da Liberdade

(The Wind that Shakes the Barley, Reino Unido/Irlanda/Espanha/Itália/Alemanha, 2006)



O cinema da dialética de Ken Loach, e a briga entre oprimidos e opressores. Os opressores são os ingleses que controlam a Irlanda, um país rural e idílico antes da invasão, da mesma forma que o condado dos hobbits em O Senhor dos Anéis. Os oprimidos, o povo gaélico, em cores neutras e interpretações naturalistas, retomando sotaques e dialetos locais. Após presenciar mais uma vez a brutalidade das forças do mal, ou melhor, da ocupação, decidirão agir. Para conquistar a liberdade e formar uma república, irão às armas, cidadãos! E serão igualmente brutais. Nesse conflito, dois irmãos lutarão lado a lado até o dia em que o país consegue uma controversa autonomia, durante os anos 20. A guerra cede lugar à política, aos debates sem fim e novamente à guerra, colocando desta vez os irmãos em lados opostos. Aí a derrota virá para ambos. Sobretudo no plano afetivo, que sucumbe diante da dimensão política, muito maior que a do indivíduo e seus laços familiares.

Filmado com neutralidade por Loach, com o mínimo de movimentação de câmera, que é posicionada quase sempre a distância, evita o panfletarismo fácil, as discussões políticas rasteiras, as simetrias maniqueístas, o artifício, as lágrimas forçosas, mas não a sua posição política. Indignado, sempre. E com as aflições dos indigentes e famélicos, sobretudo, que persistem e persistirão. Na Irlanda, ou em qualquer outro lugar do mundo. É a lição de um veterano engajado de que com um mínimo se faz grande cinema, e nunca disposto a ceder ou a facilitar. Apenas mostrar o que passa diante da câmera.

domingo, abril 15, 2007

THIS IS SPARTAAAAA!



Leônidas nas Termópilas, de David, 1814, óleo sobre tela, 395 x 531 cm, Museu do Louvre, Paris, França. E sem sunga.

sexta-feira, abril 13, 2007

Uma Juventude Como Nenhuma Outra

(Karov La Bayit, Israel, 2005)



Duas meninas e o Exército de Israel. Uma sólida instituição numa terra em constante estado de alerta e duas frágeis garotas recém-alistadas numa unidade feminina de patrulhamento. Mais parecem colegiais de uniforme que soldados. Uma, a mais bonita e de família tradicional, quer impor a disciplina na maçante patrulha pelas ruas de Jerusalém Oriental, fazendo o registro de árabes suspeitos, trabalho muitas vezes humilhante. A outra, mais liberal e rebelde, dá suas escapadas ao cabeleireiro, sob o olhar severo de sua estressada comandante. Em meio ao risco real de atentados terroristas e prisões por insubordinação, juntas manterão sua feminilidade, diante da vitrine de uma butique ou flertando com rapazes. É uma maneira de sobreviver. Após uma explosão, os laços entre elas se estreitarão, apesar das diferenças, de uma maneira até esperada, mas que tem seus encantos. Femininos, está claro, neste filme levado com naturalismo, com ênfase nos enquadramentos fechados, pelas diretoras Vardit Bilu e Dalia Hagar, e que ganhou um título idiota por aqui, para variar, cujo original em hebraico nada mais é que “perto de casa”.

Sleepless

(Nonhosonno, Itália, 2001)



O cinema da crueldade de Dario Argento, multiplicando-se em seqüências macabras, grotescas às vezes, e das mais inventivas e requintadas, muitas delas envolvendo assassinatos brutais, em que o sangue não é poupado, como sói acontecer num bom giallo. Uma série de mortes violentas traz pânico às mulheres de Turim, revivendo um caso ocorrido 17 anos antes, conhecido como os crimes do anão, embora o anão em questão, suposto assassino em série e autor de livros infantis, esteja morto há tempos. Revive também o trauma no jovem Giacomo (Stefano Dionisi), que presenciou a horrenda morte da mãe em circunstâncias parecidas. Com a ajuda de um policial aposentado e que cuidou do caso na época, Ulisses Moretti (Max Von Sydow), passa a investigar os crimes, cuja conclusão remontará à infância dos protagonistas, em que rimas infantis, que narram a morte de animais numa fazenda de hora em hora, cumprem um papel decisivo para revelar o padrão dos crimes cometidos. Tudo muito rocambolesco, mas belamente filmado, como a onírica seqüência inicial da prostituta fugindo do assassino num trem noturno, ou a dos anões que esperam na delegacia, ou ainda um longo travelling baixo na passadeira de um teatro que termina numa decapitação. Ainda que o mestre Argento tenha dirigido filmes melhores, como Suspiria (1977) e Terror na Ópera (1987), este é também essencial, pela força das imagens, encadeadas ao som de Goblin, e que não poupam o espectador de detalhes explícitos, como dedos decepados, miolos estourando, dentes quebrados ou um corne inglês (espécie de clarineta) sendo enfiado goela abaixo numa pobre vítima, cena repetida várias vezes. Pena que o filme tenha sido tão ridicularizado quando exibido aqui no Brasil. Numa notória ocasião, durante o Festival de Cinema do Rio, em 2001, a platéia caía na gargalhada a cada reviravolta. Depois, o mesmo aconteceu na Mostra de São Paulo, em 2004, durante a projeção de Il Cartaio - O Jogador de Cartas, certamente seu filme mais inverossímil. Tem horas que torço para o aparecimento de um verdadeiro serial killer no meio dessa gente toda...

quinta-feira, abril 12, 2007

Kurt Vonnegut (1922-2007)

One of the few good things about modern times: If you die horribly on television, you will not have died in vain. You will have entertained us.
("Cold Turkey", In These Times, May 10, 2004)



Escorpiano sarcástico ("o humor é um pouco como uma reação psicológica ao medo", escreveu uma vez), autor de Matadouro 5, entre outros, adaptado para o cinema em 1972, por George Roy Hill.

A Família do Futuro

(Meet the Robinsons, EUA, 2007)



Um jovem inventor, criado órfão, é transportado para o futuro. Lá conhecerá a família que nunca teve, os Robinsons, um tanto excêntrica, e terá de deter, com a ajuda do caçula, um malfeitor, de posse de outra máquina do tempo, roubada da tal família. Quer também voltar para o passado, conhecer sua mãe e impedi-la de abandoná-lo. Mas passado é passado. Às vezes, é melhor deixá-lo para trás.

Boa animação 3D da Disney, produzida por John Lasseter, da Pixar, sem animais falantes, esquilos hiperativos ou arremedo de citações pop num fiapo narrativo. Aqui, ao contrário, a estória flui bem, apoiada por bons tipos, como um chapéu-coco de mil e uma utilidades, um vilão que lembra o saudoso Terry Thomas ou uma professora movida a cafeína, em tons dickensianos, sombrios, no começo, quando o protagonista é deixado bebê na porta do orfanato em dia tipicamente chuvoso. Mas só no começo. No futuro, o mundo explode em cores vibrantes, e o filme acelera-se como nunca e ganha mais humor, especialmente quando nos introduz a anárquica família Robinson, que lembra muito a excêntrica família de Jean Arthur no filme Do Mundo Nada Se Leva (1938), de Frank Capra, com um pouco do espírito da deliciosa animação de Mark Dindal, A Nova Onda do Imperador (2000), também da Disney. Bom, famílias são todas estranhas, mesmo. De resto, de acordo com o lema do patriarca dos Robinsons, siga em frente, em direção ao futuro, e divirta-se.

quarta-feira, abril 11, 2007

Os Bons Companheiros (e um desabafo)

(Goodfellas, EUA, 1990)



Cada vez mais tenho achado que deixar este espaço atualizado é de uma inutilidade tremenda. E absoluta. Serve-me apenas para manter a cabeça fora d’água, isso quando a água já está no pescoço há tempos. E pelos olhos que apontam para o alto, encarando o teto escuro, o vazio, o sei-lá-o-quê, vislumbro apenas my reigning solitude day by day nessa escuridão toda, o que é mais e mais frustrante. Tudo, tantos e todos tão ocupados e ocultos e consumindo-se no rame-rame cotidiano, na mundanidade do mínimo que é nada, expressa pelo lugar-comum das falas formulaicas, pelos detalhes comezinhos, pela infinitesimal proporção de coisa nenhuma a soldo de alguns centavos por nada. Nada, nenhuma e mínimo 0,00000001 em milissegundos que se somam a outros que eram tão importantes milissegundos atrás, que ficam para trás também. Somados, viram segundos, horas, dias, meses, anos. E que também ficam para trás, dissipando-se. Day by day. But let them go. Agora, uma pausa nos devaneios. Freqüência da Sétima Arte novamente sintonizada para um breve parecer sobre este clássico de Martin Scorsese, que pinta um retrato fluente, vigoroso, sem glamour e de brilharecos bregas de gângsteres absolutamente escrotos, que nada têm a ver com os gângsteres da era de ouro do cinema, trágicos, heróicos ou operáticos. Em Fúria Sanguinária (1949), de Raoul Walsh, por exemplo, James Cagney morreria no alto de um reservatório em chamas, epicamente bradando a sua mãe, em fala clássica, que agora “estava no topo do mundo”. Violentos, também, mas épicos. Aqui somente violentos, pois mesquinhos, toscos, formando relações perigosas que fagocitam todos ao longo das décadas em que é narrada a trajetória de Henry Hill (Ray Liotta), menino que um dia, no caminho para a escola, cruzou a rua do Brooklyn e envolveu-se com os vizinhos mafiosos do outro lado. Nunca mais voltou à escola. Nunca mais voltaria à sua família. Encontrou outra, formada, sobretudo, pelo chefão local e “pai” Paulie Cicero (Paul Sorvino), pelo seu mentor Jimmy (Robert DeNiro) e pelo seu colega psicótico Tommy (Joe Pesci). Família unida até na cadeia. E forma outra ainda com a elegante judia Karen (Lorraine Bracco). Embora se gabe de ganhar muito dinheiro, por meio da narração em primeira pessoa que pontua a história, baseada em fatos reais, não vai além do mínimo, do escroque ordinário, pois suas raízes irlandesas e italianas o impedirão de entrar para a Famiglia mafiosa. E de ser chefão. Ficará restrito aos pequenos golpes, aos roubos e às drogas, vendendo-as e consumindo-as com a mesma intensidade. Mas, um dia, amigos viram inimigos, ao som de rock’n’roll, e o ritmo do filme se acelera, acelerando também a queda de Hill. Vertiginosamente.

Aqui, a violência não redime, não transcende, não eleva, como em Taxi Driver (1976) ou em A Última Tentação de Cristo (1988). Apenas serve para derramar mais sangue. E tudo que é conquistado por meio dela é um dia dissipado. Sem aviso. Sobra apenas a traição, a palavra não cumprida, o olhar vazio de Hill no final, o nada, contemplando a sua entrega voluntária a uma patética existência suburbana, oculto de seus “goodfellas” por razões de segurança, pois virara um indiferente alcagüete do FBI. Ou seja, mesquinho até no fim da vida. Mas agora sem os inúmeros bibelôs, ternos, mulheres e carros cafonas que o adornavam quando se achava no topo. Topo de um castelo de cartas, isso sim.

Sem dúvida, um marco dos filmes de gângster, a serviço da mundanidade, da epiderme, e não da espiritualidade. Em momento-chave, por exemplo, a cruz no peito de Henry Hill é coberta pela camisa por sua noiva, para que ele possa conhecer a sogra judia. Nunca mais será mostrada. A cruz, está claro. Não importará também, pois Henry não foi tocado pelo divino, pela graça, talvez por se aproximar demais do Mal, que prospera com facilidade no mundo dos homens, e por se deixar levar por ele, indiferentemente.

Agora, o Nada. Novamente. Thank you.

As Férias de Mr. Bean

(Mr. Bean’s Holiday, Reino Unido/EUA, 2007)



O inutilmente metódico Mr. Bean (Rowan Atkinson) ganha na rifa da paróquia de Londres uma viagem para Cannes e uma câmera de vídeo. Rumará para a França. Lá, depara-se com a comida estranha do país vizinho, num momento à Oldboy, e com outras particularidades locais que na verdade são apenas fakes representações de estereótipos dos franceses que ele tratará de demolir, literalmente, um pouco à maneira de Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão (1968). Toma o trem rumo ao Mar Mediterrâneo. Obviamente perderá o trem, o dinheiro, o passaporte, a noção. Bom, isso ele já perdeu faz tempo. Pega carona com uma bela francesa (Emma De Caunes), arrastando junto um menino a tiracolo, que ele desastrosamente acabou separando do pai. Os laços se estreitam, e Bean filmará tudo pelo caminho. Depois, exibirá o vídeo no Festival de Cinema de Cannes, durante a projeção do filme de um cabeçudo e narcisista diretor de cinema (Willem Dafoe), numa seqüência impagável. Ou seja, arruinará com tudo. Ou nem tanto, já que os franceses adoram algo exótico nas telas, mesmo que seja um inglês tosco, neste muito simpático filme de Steve Bendelack, em que as piadas visuais se sucedem num bom ritmo, evocando o Monsieur Hulot de Jacques Tati e dando boas alfinetadas na afetação dos gauleses e na dos outros também, da mesma forma que fizera com os americanos no anterior (e hilário) Mr. Bean – O Filme (1997). Aqui, marcando a despedida de Atkinson do personagem que o celebrizou. Será? De qualquer forma, em bom “francês”, gracias, Mr. Bean.

terça-feira, abril 10, 2007

Domínio: Preqüela de "O Exorcista"

(Dominion: A Prequel to the Exorcist, EUA, 2005)



Nunca lançada nos cinemas, trata-se da tumultuada primeira versão de O Exorcista: O Início, inteiramente filmada para ser engavetada pelos produtores da Morgan Creek e posteriormente refilmada e emporcalhada por Renny Harlin. Aqui, mais límpida, pelas mãos seguras de Paul Schrader. Atmosférica e mais lenta também, é na verdade um drama conduzido com sobriedade sobre a culpa e a perda da fé que um filme de terror pura e simplesmente, quase ausente de efeitos espetaculares, embora eles estejam presentes em alguns fracos momentos. Na África, após presenciar um trágico evento pelo qual se viu como responsável em plena II Guerra Mundial, o padre Merrin (Stellan Skarsgård) já não mais exerce o sacerdócio. Sem fé, há anos abandonara a batina. Agora como arqueólogo, durante escavações na colônia inglesa do Quênia, local dos mais inóspitos, descobre uma magnífica igreja cristã medieval misteriosamente enterrada. À medida que as escavações avançam, descobre também que a construção era na verdade um templo de louvação a Lúcifer. Hienas surgem. Um bebê deformado nasce morto. É o mal que passa a emanar do local, infiltrando-se entre os nativos do vilarejo e os ingleses. Mal difícil de ser detectado, pois aqui não há vômitos, camas balançando, tetos rachando, gritarias o tempo todo, nem sobrevôos de câmera em cenários digitalmente construídos. Assim, o demônio aproveita e possui um garoto defeituoso, muito inocente e assustado e que vivia abandonado até ser recolhido e tratado pela médica do vilarejo (Clara Bellar). Hora de o exorcista Merrin, com a sua espiritualidade atormentada, entrar em ação, mas não sem antes enfrentar seus dilemas e as tentações do próprio demônio, algo mais difícil de ser exorcizado.

Tudo é muito discreto, misterioso e eficaz, pois Schrader, roteirista de Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980) e A Última Tentação de Cristo (1987) e diretor de Hardcore – No Submundo do Sexo (1979), Mishima (1985) e Temporada de Caça (1997), mais seguro nas discussões teológicas entre Merrin e o padre novato Francis (Gabriel Mann), por exemplo, preocupa-se essencialmente em desencavar o mal que existe no mundo e que aflige os homens diante de suas fragilidades, bem à maneira de Robert Bresson, que com os efeitos fáceis que abundaram na infame versão de Harlin e até na de Friedkin. No mínimo, interessante.

segunda-feira, abril 09, 2007

Mais um

John Flynn (???-2007), legítimo diretor de macho movies.



Luigi Comencini (1916-2007)

Regista ed uno dei padri della commedia all’italiana. Un peccato!


Um Beijo a Mais

(The Last Kiss, EUA, 2006)



Rapaz todo certinho (Zach Braff, lembrando um pouco o Dustin Hoffman de A Primeira Noite de um Homem, mas só um pouco) conhece garota toda certinha (Jacinda Barrett). Rapaz se junta a ela. Ela fica grávida. E ele entra em crise. Arquiteto, beirando os 30, sente que sua vida tenha sido um tanto planejada demais, correta demais, com tudo caminhando para um desfecho previsível e monótono ao lado de sua bela namorada, que certamente virará esposa, com direito a festinha, convites na gráfica, bolo e arremesso de buquê. No fundo, anseia para dar mais alguns beijinhos e amassos e outras coisas para além do baixo ventre. Anseia por uma certa inconseqüência que nunca teve na vida. Num casamento, conhece outra garota (Rachel Bilson), uma universitária. Um flerte. Encantamento mútuo. Paixão. E lá vêm os tais beijos a mais. E outra crise para ele, agora familiar. Assim como para seus amigos e sogros, eles mesmos envolvidos em suas próprias crises, com exceção de um barman amigo deles, todo lúbrico, despreocupado e que é o oposto de todos.

Agradável de ver, bem filmada pelo diretor Tony Goldwyn e seguramente bem interpretada, esta refilmagem do italiano O Último Beijo (2001), de Gabriele Muccino, não se livra, no entanto, das obrigações conjugais que arremessa impiedosamente nas costas do personagem de Zach Braff, enchendo-o de culpa e remorso. Ele deveria ter largado tudo e seguido os seus buddies rumo à Terra do Fogo. Afinal de contas, ninguém é perfeito, tudo se perdoa e o mundo é grande demais para ficar limitado à varanda da casa, especialmente aos 30 anos. E ponto final, seu Paul Haggis.

quinta-feira, abril 05, 2007

utterly romantic

somewhere i have never travelled

somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence
in your most frail gesture are things which enclose me
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers
you open always petal by petal myself as spring opens
(touching skilfully, misteriously) her first rose

or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending,

nothing we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility; whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain has such small hands

e. e. cummings, citado em hannah e suas irmãs.

boa páscoa para todos e todas, sobretudo!

Bob Clark (1941-2007)

Highlights.







Exilados

(Exiled/Fangzhu/Fongchuk, Hong Kong/China, 2006)



Uau! Era uma vez em Macau...

Uma das melhores coisas made in China a aportar por aqui nestes últimos (e infelizes) anos. Desde O Tempo e a Maré (2000), talvez. Uma fantástica mescla de western spaghetti com filme de gângster, na sólida tradição deste gênero tão cultuado dentro e fora de Hong Kong. Um quinteto de protagonistas dos mais carismáticos e divertidos. E vilões de tipos marcantes. Não adianta. É inútil poupar adjetivos a esta bela produção a cargo de Johnnie To (Eleição, Breaking News), que situa a estória em Macau, em 1998, um pouco antes da devolução da antiga colônia portuguesa para a China. Nela, quatro gângsteres ou pistoleiros devem eliminar Wo, um renegado de um poderoso chefão local que desistiu do crime para começar uma nova vida com a mulher e o filho pequeno. Até tentam fazer o serviço, mas acabam se juntando a ele, antigo colega deles, para eliminar outro chefão. Caem numa emboscada. Viram renegados ou os "exilados" do título. Sem dinheiro e com Wo seriamente ferido, são também perseguidos pelos dois principais mafiosos da ilha. Antigos rivais, estão para fechar um acordo para poderem operar sob a nova administração de Pequim. Unem-se na caçada aos pistoleiros mais por acidente que por afinidade. E é o acidente ou acaso e a sorte, no entanto, que decidirão o destino deles, em que a lealdade falará mais alto sempre.

Em momentos anticlimáticos, como no começo, calcado diretamente da espera inicial na estação de Era Uma Vez no Oeste (1968), To exalta os duelos operáticos, bem ao gosto de Sergio Leone, com similaridades na trilha sonora alla Morricone, onde a tensão arma-se aos poucos a partir da espera, que é, muitas vezes, mais longa que o tiroteio em si. Depois, nos inúmeros tiroteios belamente filmados e editados, segue-se o clássico balé das armas apontadas uma na cara do outro e disparadas bem ao gosto de John Woo, nos bons tempos, e de Ringo Lam. Tudo tão bem construído visualmente, aproveitando ao máximo a espacialidade do CinemaScope para contrapor ou aproximar os personagens em cena ou confiná-los em cantos de modo a encher as seqüências com muita tensão. Mas é bobagem falar mais. Rendam-se a estes gângsteres, ora sortudos, ora azarados, sempre bem-humorados, neste filme que beira à perfeição em sua geometria de antagonismos e que aproveita como nunca antes visto a bela arquitetura portuguesa de Macau. E também as paisagens desérticas fora dela, evocando diretamente o Velho Oeste.

quarta-feira, abril 04, 2007

Hannah e Suas Irmãs

(Hannah and Her Sisters, EUA, 1986)



Tipos humanos, tipos frágeis, mesmo depois de adultos, quando tudo parece mais angustiante, incerto e questionável, numa ciranda amorosa de começos e recomeços, onde a câmera de Woody Allen passeia pelas ruas de Nova Iorque, entrelaçando indivíduos e enamorando-se das riquezas arquitetônicas da cidade e de sua modernidade advinda do século XIX. Cenário em que as três irmãs de Tcheckhov, aqui quatro, colecionam amores, desilusões e novas expectativas. Abre-se num jantar familiar de Ação de Graças, em que Elliot (Michael Caine), financista da Bolsa casado com a doce Hannah (Mia Farrow), revela em voz off seu desejo pela bela cunhada Lee (Barbara Hershey), que vive no SoHo, junto com o artista plástico Frederick (Max von Sydow). Ela desconfia disso e se abrirá ao affair com ele, deixando Frederick e abalando o casamento de Elliot. Ao mesmo tempo, Mickey (Woody Allen), um neurótico roteirista e produtor de TV e ex-marido de Hannah, encara a possibilidade da morte ao descobrir que pode estar com um tumor no cérebro. Passa a questionar Deus, o mundo, a existência, mesmo com o prognóstico negativo dos exames. Depois de tentar se converter para o catolicismo ou virar Hare Krishna, em momentos engraçados, pensa até em se matar, mas redescobre o cinema, redescobre a vida, num instante mágico, quando revê Diabo a Quatro (Duck Soup, 1933), com os Irmãos Marx. É o cinema mais uma vez o santo remédio para as incertezas da vida, algo mostrado com recorrência nos filmes de Allen, fazendo alusão a sua própria cinefilia. Ao mesmo tempo, Mickey reencontra uma das irmãs de Hannah, Holly (Dianne Wiest) e, o que antes parecia uma união improvável, pelo passado tumultuado dela, envolvida com drogas, inúmeras rejeições amorosas e profissionais, acaba tomando rumos inesperados, bem ao sabor do acaso, fechando o filme no mesmo jantar de Ação de Graças do começo e numa chave mais doce, otimista, esperançosa, neste filme de encontros, desencontros, reencontros e amores improváveis que se tornam possíveis, onde Allen parece dizer que um nunca está imune ao desejo pelo outro, mesmo diante das imposições sociais ou mesmo por causa delas. Ao final persiste ainda um tom mais uma vez agridoce, típico de muitos filmes de Allen dos anos 80, enganosamente neutro na maneira de filmar, pontuado por intertítulos literários e pela narração em off, contrapondo-se às imagens. Maduro, terno, inesquecível e que resultou merecidamente nos Oscars de Melhor Roteiro para Allen e de Melhor Atriz e Ator Coadjuvante para Wiest e Caine, respectivamente. Para ser visto e revisto, sempre.

terça-feira, abril 03, 2007

Crimes e Pecados

(Crimes and Misdemeanors, EUA, 1989)



As contravenções ou transgressões (misdemeanors) comuns a qualquer ser humano diante do adultério, que levará o crime e depois a culpa ao respeitável oftalmologista Doutor Judah Rosenthal (Martin Lanadau), que sofre para romper com a amante obsessiva, interpretada por Anjelica Huston e que depois de anos de affair decide contar tudo para a esposa de Judah (Claire Bloom) e chantageá-lo, para desespero dele, que não vê outra saída a não ser eliminá-la, com a ajuda do irmão mafioso (Jerry Orbach). Torce-se por ele, mas torce-se também para que o diretor de documentários Cliff Stern (Woody Allen), com o casamento em crise, seja correspondido pela produtora Halley Reed (Mia Farrow), que a conhece enquanto filma, para ganhar algum dinheiro e completar seu projeto pessoal, um documentário sobre o egocêntrico produtor de televisão (e cunhado) Lester (Alan Alda), em duas histórias que correm paralelas, mas que se convergem num final melancólico, neste filme levado com rigor demonstrativo e sobriedade por Woody Allen. Rigor, sobretudo, nos enquadramentos, destacando a onipresença do olhar, e nos temas filosoficamente debatidos ao longo do filme, pontuado por vários questionamentos morais apenas para descambar na dúvida e na incerteza que cobrem o universo, que parece escapar o tempo todo de qualquer compreensão mais analítica aos nossos próprios olhos. Destaca, sobretudo, a indiferença desse universo diante das aflições humanas e confronta-a com a certeza amarga, entre outras coisas, de que a pessoa com quem se compartilha afinidades certamente e misteriosamente não será a pessoa que ficará ao seu lado no final das contas, como demonstrado na cena da festa, no desenlace, onde muitos se divertem, enquanto um se recolhe, triste, no canto escuro, longe de todos. A vida é um mistério e um saco, às vezes, mas nela há alguns pequenos prazeres, como ir ao cinema à tarde, durante o horário de trabalho, essa sim uma deliciosa transgressão e que daria sentido vez ou outra a esse universo indiferente. Um extraordinário filme de Woody Allen, menos engraçado do que muitos poderiam imaginar, embora o humor marque presença aqui e ali, de modo agridoce, tchecoviano principalmente.

segunda-feira, abril 02, 2007

300

(EUA, 2007)



300 guerreiros com ímpeto infinito para a batalha, nesta não mais história em quadrinhos ou gibi, mas graphic novel em movimento. Berrada e de tinturas extravagantes, escandalosas, com sangue espirrando digitalmente e tingindo a tudo e a todos, e onde o inferno parece estar em toda a parte e bem antes da hora do jantar anunciada pelo rei Leônidas, líder virtuoso dos espartanos, em certo momento da batalha contra um milhão de soldados persas vindos direto do número musical “Masquerade”, de O Fantasma da Ópera, filme em que Leônidas, ou melhor, Gerard Butler estrelou, e aos berros também. Guerreiros, espartanos até no traje, partindo para enfrentar a pesada couraça (e os piercings) do exército persa trajando apenas cuecas Zorba, o grego e sunguinhas Speedo, com barrigas saradas e as lanças em riste, contrariando a lei do Oráculo e do Conselho de Esparta. Lanças erguidas o tempo todo, contra apenas alguns milhões de flechinhas asiáticas e elefantes descontrolados, afinal THIS IS SPARTA! Pois nós, espartanos, é que somos os machos do Peloponeso a pegar nas lanças e não aqueles filósofos baitolas de Atenas que ficam paradões na Acrópole discutindo categorias do espírito ou metafísica, ou o Conselho de viadinhos de Esparta que não quer saber de mandar mais tropas de gregos de sunga para a boate gay Boca do Inferno, ou melhor, Termópilas, onde os persas, invasores meio burros na estratégia, são constantemente encurralados pelos poucos valentes homens do rei Leônidas. Ou seja, o kitsch está em toda a parte, lembrando os épicos fisiculturistas dos anos 60 (peplum), e isso faz do filme algo bacaninha de se assistir, ainda que caminhe de forma meio dura, não tão épica, nas mãos pouco fluidas do diretor Zack Snyder (do legal Madrugada dos Mortos, 2005), (mal) grudando digitalmente uma série de quadros a outros, lembrando às vezes Herói, às vezes Gladiador (a cena final mimetiza o filme de Ridley Scott, mas os gregos não faziam arte pela imitação ou mimese? e os romanos não copiaram tudinho dos gregos? então deixa para lá, vai!). E, por mais que a batalha seja travada por um ideal de liberdade (e testosterona), com belas palavras gritadas contra a escravidão e a tirania, é a vontade de descer logo o cacete nos persas que move estes homens marombados, militaristas, deixando de lado a política e a diplomacia, coisinhas de nada, convenhamos. Vontade que os escraviza desde criancinha, preparando-os para o lobo mau e para a guerra. Sempre. Isso se não nascerem deformados, pois aí ou vão direto para o precipício ou viram traidores corcundas de marca maior, juntando-se ao freak show carnavalesco do reino de Xerxes (Rodrigo Santoro). Mas, divago sobre este filme que vale a pena ser visto, sim, tem momentos visualmente exuberantes, ainda que no todo divida opiniões, dificilmente agradando a gregos, espartanos, troianos ou os iranianos de hoje em dia.