sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Mais Estranho que a Ficção

(Stranger than Fiction, EUA, 2006)



Nos filmes de Marc Forster, os personagens parecem vagar num limbo, numa situação que os deixa amortecidos ou no limiar da angústia, que pode ou não ser transitória. Há, por exemplo, o bloqueio criativo de James Barrie (Johnny Depp), em Finding Neverland (2004). Há o torpor do personagem de Billy Bob Thornton em A Última Ceia (2001). Há a angustiante situação de Radha Mitchell, desnorteada após dar a luz a um natimorto, em Gritos na Noite (2000). E, por fim, há o limbo de fato de Ryan Gosling em A Passagem (2005).

Neste seu novo e mais light filme, Harold Crick (Will Ferrell) vive também preso na apatia cotidiana, amortecida pelos rígidos hábitos. Fiscal da Receita americana, bom de números, mantém a conta de cada segundo do dia, cada escovada de dente, cada passo necessário para alcançar o ponto de ônibus antes de chegar ao trabalho, na hora exata. Solitário, vive de olho no relógio. Um dia, porém, começa a ouvir vozes que narram cada instante de sua vida, cada gesto seu, tudo sempre igual, tudo sempre medido. Primeiro, a solução clínica e o diagnóstico de esquizofrenia. Nada disso. Trata-se da voz de uma renomada autora de ficção (Emma Thompson) que está escrevendo um livro sobre Harold sem se dar conta de que ele existe de fato. Com a ajuda de um professor de literatura (Dustin Hoffman), Harold descobre quem é a sua narradora onisciente e tenta ir atrás dela, pois para terminar o livro e acabar com o bloqueio criativo que a aflige, ela quer matá-lo, como tem feito com os personagens de suas histórias desde sempre. Sendo morto na ficção, ele morre de verdade. Mas Harold não quer morrer, ainda mais agora que está apaixonado pela improvável Anna Pascal (Maggie Gyllenhaal), que caiu na malha fina da Receita e de Harold (ah, sempre o amor, suspiros!), e que está aproveitando a vida como nunca, antes afogada em números. Estará a autora, com todo o seu poder, disposta a fazer concessões, sacrificando a sua arte?

Mais para o final, um tom de Carpe Diem for Dummies impregna a narrativa e esvazia um pouco este lado mais sombrio do protagonista, quando se dá conta de que vai morrer. Assaltado por este súbito memento mori, uma hora resigna-se ao saber que seu destino está traçado, é inexorável, para que a arte maior sobreviva a ele. Mas antes aproveite a vida, é a mensagem martelada. Ainda assim, a direção do alemão Forster e sua sensibilidade européia tornam ternos os momentos entre Harold e Anna e, excelente diretor de atores, vai humanizando com humor outros personagens ao longo do filme, fugindo do esquematismo metalingüístico do roteiro e das associações forçadas entre escrita e realidade. Só que aqui com a escrita inspirando a realidade. Realidade do cinema, claro. Se fosse Spike Jonze o diretor teria derrapado para a paródia existencialista, que por fim diluiria-se numa forma mais rebuscada. E Will Ferrell, estrela de tantas comédias físicas, se sai muito bem num papel mais contido e que também tem sua graça quando, com um olhar amorfo, esfrega os dentes diante do espelho ou quando contracena com um inspirado Dustin Hoffman. No todo, bem simpático.

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