(Bug, EUA, 2006)
Desde as primeiras tomadas de Bug, um plano aéreo noturno de um motel decrépito no meio do nada em Oklahoma, a sensação de solidão e isolamento do personagem de Ashley Judd se insinua no espectador. E não o abandona até o seu intenso desfecho. Amargando a perda do filho pequeno, se entupindo de álcool e drogas e trabalhando como garçonete num bar vagabundo de lésbicas, ela é ainda perturbada por constantes telefonemas anônimos, que acredita serem de seu ex-marido (Harry Connick Jr.), recém-saído da prisão. Também crê estar sendo observada por ele. Uma noite, sua única amiga lhe apresenta um sujeito frágil e tão solitário quanto ela (Michael Shannon, de As Torres Gêmeas). Iniciam um romance. No entanto, ele, um desertor do Exército, em certo momento diz ter sido vítima de experimentos militares quando servia no Iraque e que o deixaram impregnados de insetos minúsculos que procriam sem parar debaixo da sua pele. E aí a paranóia, antes sugerida por sons do telefone, do ar-condicionado e dos ruídos esquisitos do alarme, vai se instaurando aos poucos no ambiente. E a contagia. Sexualmente, sobretudo. Embora a ameaça nunca seja visível, ela também passa a compartilhar da mesma visão dos estranhos insetos em toda a parte e a se mutilar como ele. E a paranóia se intensifica e toma conta do lugar, reveste suas paredes, põe a nu os indivíduos, os afastam de vez do mundo. Antes, o ex-marido, violento, os espreita e, certa feita, ao forçar a entrada no quarto e notar a ausência da TV, pergunta como viver sem o aparelho, como saber do que está acontecendo no mundo sem a televisão. Não é uma fala gratuita. A alienação progressiva de Judd, prefigurando a loucura do que virá, a determina.
Econômico, sem disfarçar as suas origens teatrais (baseado em peça off-Broadway de Tracy Letts), e até intensificando-as no terço final, a ponto de nunca permitir um respiro, ou um plano geral dos efeitos espetaculares e sons dos sobrevôos de helicópteros, só sugeridos por luzes e vibrações, quando os dois protagonistas instalam-se de vez em sua loucura, perdem o controle de si e aceleram a inevitável degradação, William Friedkin, com pleno do domínio do limitado espaço cênico, perscrutado em cada centímetro por sua câmera de lentes fechadas em planos-detalhe ou close-ups ou planos médios, faz aqui um trabalho de mestre, sensorial, concentrado, convergindo para as mesmas obsessões epidérmicas e inquietações orgânicas e sexuais de um David Cronenberg, por exemplo, mas mantendo coerência rara com o resto da sua obra. Daquela que mostra o indivíduo sem controle do corpo, degenerando-se (O Exorcista), tragado e desumanizado pelo submundo (Parceiros da Noite), sacrificando-se (Viver e Morrer em Los Angeles, Caçado), ou mais vítima, ainda que violenta e selvagem em seus impulsos primitivos, de um governo militarista, suposta fonte de todo o mal e (des)controle do ser humano (Regras do Jogo, Caçado). Para isso, conta com as fabulosas interpretações de Judd, mais desglamourizada do que nunca, e de Michael Shannon, reprisando o papel do palco, e com um texto cru e forte. Além disso, o sentimento de deslocamento dos personagens, de se encontrarem fora do mundo, e onipresente aqui até o último instante, quando a tela se escurece de vez, sentimento muito caro aos românticos do século XIX, e a completa entrega do casal a uma paixão auto-destrutiva, sinônimo de doença, que só pode ser plenamente realizada ou “curada” com a morte, fazem de Bug o mais romântico filme do ano. Sem concessões, claro, a ponto de deixar o público mal-amado e mal-acostumado de shoppings e Reservas Culturais da vida se “coçando” de raiva no final da sessão. E isso já é mais do que nada nestes pomposos tempos, tão preguiçosos, vazios, entorpecidos pelos ditos novidadeiros do já visto antes, e conformistas.
2 comentários:
FILMAÇO! a volta de Friedkin ao gênero que ele conhece como poucos. Ashley Judd fantástica unida a toda uma paranóia norte-americana pós-11 de setembro. Mais atual do que isso impossível!
(http://claque-te.blogspot.com): Fahrenheit 451, de François Truffaut.
E um grande filme romântico também, Roberto. Pois romantismo é isso: um amor levado às últimas conseqüências, obsessivo, dilacerador, wagneriano, não ilusões bobocas sobre casamento e princípe encantado. E Friedkin sabe como poucos explorar muito bem o limitado ambiente. Um abraço.
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