(Goodfellas, EUA, 1990)
Cada vez mais tenho achado que deixar este espaço atualizado é de uma inutilidade tremenda. E absoluta. Serve-me apenas para manter a cabeça fora d’água, isso quando a água já está no pescoço há tempos. E pelos olhos que apontam para o alto, encarando o teto escuro, o vazio, o sei-lá-o-quê, vislumbro apenas my reigning solitude day by day nessa escuridão toda, o que é mais e mais frustrante. Tudo, tantos e todos tão ocupados e ocultos e consumindo-se no rame-rame cotidiano, na mundanidade do mínimo que é nada, expressa pelo lugar-comum das falas formulaicas, pelos detalhes comezinhos, pela infinitesimal proporção de coisa nenhuma a soldo de alguns centavos por nada. Nada, nenhuma e mínimo 0,00000001 em milissegundos que se somam a outros que eram tão importantes milissegundos atrás, que ficam para trás também. Somados, viram segundos, horas, dias, meses, anos. E que também ficam para trás, dissipando-se. Day by day. But let them go. Agora, uma pausa nos devaneios. Freqüência da Sétima Arte novamente sintonizada para um breve parecer sobre este clássico de Martin Scorsese, que pinta um retrato fluente, vigoroso, sem glamour e de brilharecos bregas de gângsteres absolutamente escrotos, que nada têm a ver com os gângsteres da era de ouro do cinema, trágicos, heróicos ou operáticos. Em Fúria Sanguinária (1949), de Raoul Walsh, por exemplo, James Cagney morreria no alto de um reservatório em chamas, epicamente bradando a sua mãe, em fala clássica, que agora “estava no topo do mundo”. Violentos, também, mas épicos. Aqui somente violentos, pois mesquinhos, toscos, formando relações perigosas que fagocitam todos ao longo das décadas em que é narrada a trajetória de Henry Hill (Ray Liotta), menino que um dia, no caminho para a escola, cruzou a rua do Brooklyn e envolveu-se com os vizinhos mafiosos do outro lado. Nunca mais voltou à escola. Nunca mais voltaria à sua família. Encontrou outra, formada, sobretudo, pelo chefão local e “pai” Paulie Cicero (Paul Sorvino), pelo seu mentor Jimmy (Robert DeNiro) e pelo seu colega psicótico Tommy (Joe Pesci). Família unida até na cadeia. E forma outra ainda com a elegante judia Karen (Lorraine Bracco). Embora se gabe de ganhar muito dinheiro, por meio da narração em primeira pessoa que pontua a história, baseada em fatos reais, não vai além do mínimo, do escroque ordinário, pois suas raízes irlandesas e italianas o impedirão de entrar para a Famiglia mafiosa. E de ser chefão. Ficará restrito aos pequenos golpes, aos roubos e às drogas, vendendo-as e consumindo-as com a mesma intensidade. Mas, um dia, amigos viram inimigos, ao som de rock’n’roll, e o ritmo do filme se acelera, acelerando também a queda de Hill. Vertiginosamente.
Aqui, a violência não redime, não transcende, não eleva, como em Taxi Driver (1976) ou em A Última Tentação de Cristo (1988). Apenas serve para derramar mais sangue. E tudo que é conquistado por meio dela é um dia dissipado. Sem aviso. Sobra apenas a traição, a palavra não cumprida, o olhar vazio de Hill no final, o nada, contemplando a sua entrega voluntária a uma patética existência suburbana, oculto de seus “goodfellas” por razões de segurança, pois virara um indiferente alcagüete do FBI. Ou seja, mesquinho até no fim da vida. Mas agora sem os inúmeros bibelôs, ternos, mulheres e carros cafonas que o adornavam quando se achava no topo. Topo de um castelo de cartas, isso sim.
Sem dúvida, um marco dos filmes de gângster, a serviço da mundanidade, da epiderme, e não da espiritualidade. Em momento-chave, por exemplo, a cruz no peito de Henry Hill é coberta pela camisa por sua noiva, para que ele possa conhecer a sogra judia. Nunca mais será mostrada. A cruz, está claro. Não importará também, pois Henry não foi tocado pelo divino, pela graça, talvez por se aproximar demais do Mal, que prospera com facilidade no mundo dos homens, e por se deixar levar por ele, indiferentemente.
Agora, o Nada. Novamente. Thank you.
6 comentários:
Pena que esse filme se perde na tela pequena, até pelos excessos de voz over. Mesmo assim, é meu Scorsese favorito e que eu tive o prazer de ver na telona.
Vi também no cinema. Foi meu primeiro Scorsese nas telonas. É ótimo, mas tenho especial apreço pelos Scorseses menos cotados, como Gangues de Nova Iorque, Vivendo no Limite, Cassino e A Época da Inocência.
Pare com esse rancor, meu caro. Nem tudo é escuridão.
Meu caro, há tempos estou possuído pelo espírito do fantasma da ópera. Ou seja, vejo escuridão em toda parte, por mais cafona que isso possa parecer.
Muito bom seu texto, David!
E Ailton, para po. Voz over do FELLAS é uma das mais bem utilizadas. Se achei fenomenal vendo apenas em VHS e DVD. No cinema, provavelmente enfartaria.
Dos SCORSESE menos octados eu vou com: QUEM BATE A MINHA PORTA, REI DA COMÊDIA, DEPOIS DE HORAS, AVIADOR, ALICE e CABO DO MEDO. Dificilmente acho CASSINO considerado "menos cotado" dele.
Obrigado, Daniel. Agradeço a visita e o elogio. E dos Scorseses que você citou, gosto de todos. Quanto a Cassino, na época, me pareceu uma refilmagem de Os Bons Companheiros. Revendo-o e lendo o livro de Nicholas Pileggi, passei a considerá-lo como um dos melhores dele.
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