(INLAND EMPIRE, França/Polônia/EUA, 2006)

“Estranho o que o amor faz”, entoa em certo momento o refrão da assombrosa música-tema composta e cantada pelo próprio David Lynch sobre os “fantasmas do amor”. Esse amor proibido que faz mal à atriz Nikki Gracie (Laura Dern), mulher casada com um homem poderoso e controlador e, que após se envolver num affair perigoso com o galã mulherengo Devon (Justin Theroux), com quem contracena na nova produção do cineasta Kingsley (Jeremy Irons), é arrastada para uma apavorante, inexplicável e labiríntica jornada em que, além do papel em que atua, assumirá múltiplas personalidades, tema recorrente na obra de Lynch, e caminhará em percursos descontínuos por cômodos escuros habitados por prostitutas que, certa feita, dançarão alegres ao som de “Locomotion”, becos sombrios com poloneses oriundos dos anos 40, ruas cobertas de neve e com tristes prostitutas polacas, escadarias, corredores de hotel, terá seu rosto espancado, esbofeteado e literalmente deformado, ao longo das três fascinantes horas de duração deste INLAND EMPIRE. Porém, antes de o filme de Nikki entrar em produção, uma cigana (Grace Zabriskie, assustadora) a visita e a alerta sobre um assassinato que ocorreria fora da trama do filme e, no tom bastante sinistro que seu discurso de forte sotaque eslavo vai assumindo, com o seu rosto fora de proporção, deformado pela lente grande angular, fala sobre como o mal se impregnou no mundo e sugere que Nikki traria em si a sua variação, como a menina que se perdeu no mercado e passou a enxergar o “amanhã”, sem saber distingui-lo do “ontem” e do “hoje”, tornando-se além de atriz, espectadora daquilo que virá para si. O filme em que atuará e se perderá em seus cenários, em diferentes pulos no tempo, na verdade, é uma refilmagem de um antigo filme situado no Leste Europeu, outrora baseado num conto cigano e que nunca fora concluído, pois os dois atores principais teriam sido assassinados durante a produção. Assim, paira sobre esse projeto abortado a fama de amaldiçoado, inclusive pelo seu nome original, em alemão “Vier-Sieben”, ou “47”, número considerado maldito, informação mantida oculta pelos produtores do remake. Essa lenda urbana de filme maldito, nunca completado, lança a todos os envolvidos no projeto uma espécie de aura maligna, acentuada pelas luzes do set que mal iluminam o que deve ser iluminado. Ao contrário, em seus desajustes, expõem todos à escuridão. A própria claridade da cena romântica no gazebo no jardim cenográfico tem que ser desfeita ou deixada para trás logo em seguida para que se apronte outro set no interior do escuro estúdio. Aos poucos, ambos os filmes, o do passado e o do presente, se misturam, assim como a vida da atriz principal ou “real” se funde com a da ficção e com a(s) de outra(s) mulher(es) que encontra em seu tortuoso percurso. Ora Nikki se torna uma mulher pobre, suburbana, ora uma mulher agressiva, abandonada pelo marido, amargando um filho morto, que conta para um lacônico terapeuta (ou um detetive ou um policial), em sessões num sujo escritório, todos os abusos sofridos por homens, até uma hora em que se perde enlouquecida na constelação das estrelas impressas na calçada da fama de Hollywood, largada ferida na sarjeta onde vomita sangue sob o olhar indiferente de mendigos que lá habitam. De atriz vira prostituta com outras prostitutas. Ou volta a ser atriz. À espreita, seu marido e um “Fantasma” a observam, a perseguem, a assustam, a atormentam, enquanto tudo parece ser assistido na televisão de um quarto de hotel por uma mulher, ou “Lost Girl” (Karolina Gruszka), que chora copiosamente. Ao mesmo tempo, em várias cenas que pontuam o filme, os Rabbits do sitcom da Internet criado por David Lynch, na verdade uma família de humanos com cabeça de coelhos, quase nada fazem a não ser aguardar numa sala de estar, proferindo frases banais, mas que provocam gargalhadas típicas de claques de seriados cômicos de TV, tornando o filme uma espécie de simulacro do espetáculo televisivo. Ainda assim, por mais passivos que sejam esses rabbits, também "vazam" para outros ambientes ou se fundem a outros personagens.
Sem dúvida, o mais desconcertante (ou para muitos de seus detratores, o “mais desconjuntado”) trabalho de Lynch, que aqui abdica radicalmente da clareza narrativa (mas não da narrativa em si, está claro, pois lança várias pistas e sinais que remetem uns aos outros ao longo do filme, que são sempre retomados ou intensificados num coeso jogo de associações visuais) e de seus fáceis jogos de identificação para apagar de vez as fronteiras entre o sonho, o devaneio, o espetáculo cinematográfico, o televisivo e o que se chama de realidade, na verdade um todo imposto pela representação cinematográfica fabricada e manipulada pela mão artística do diretor, ao mesmo tempo atraído por Hollywood e anti-hollywooodiano por excelência. Representação erguida aqui de forma mais bruta, desorientadora, pelas imagens muitas vezes mal-cuidadas, nem sempre muito nítidas, pois captadas por pequenas e flexíveis câmeras digitais de menor definição que as câmeras HD. Ainda assim, imagens essas bastante perturbadoras e hipnóticas em sua natureza mais áspera, intensificadas pelo clima de pesadelo empregado pelo diretor, obcecado que é com os sonhos, e onipresente em cada quarto percorrido. Só Lynch, com toda a sua radicalidade estética que lhe é notória, consegue impor um clima ameaçador a um simples abajur que oscila num quarto escuro, elevando o volume das caixas acústicas a patamares inquietantes. Aliás, o trabalho sonoro aqui, como sói acontecer na obra de Lynch, é dos mais envolventes e sensoriais. Ajuda a tornar o medo sentido a cada passo dado pela esplêndida Laura Dern pelas portas que adentra muito real, epidérmico, de provocar genuínos calafrios, como há muito não os sentia, especialmente na cena que se abre com a fusão de uma pintura de um palhaço com a imagem de Dern correndo na escuridão em direção à câmera ou em toda a seqüência do confronto com o “Fantasma”, cujo rosto se transfigura no rosto deformado dela para depois derreter grotescamente. É Lynch transmutando o tempo todo as peças do seu quebra-cabeça móvel, que se abrem para outros encaixes e (muitas vezes inúteis) possibilidades interpretativas, além de incorporar nesse percurso fragmentos de outros trabalhos, como Mulholand Drive, A Estrada Perdida, Darkened Room, o já citado Rabbits, Os Últimos Dias de Laura Palmer e, sobretudo, evocar o clima bem mais experimental de Eraserhead.