quinta-feira, dezembro 28, 2006

O Segredo de Beethoven

(Copying Beethoven, Hungria/Reino Unido, 2005)



Agniezska Holland é figura de ponta no cinema polonês dos anos 70. Foi assistente e roteirista de diretores como Andrzej Wajda, Krzysztof Kieslowski e outros nomes cheios de consoantes. Fora da Polônia, construiu uma carreira de altos e baixos, com filmes como o ultra-aclamado Filhos da Guerra (91) e o ultra-esquecido O Terceiro Milagre (99).

Acredito que muitos também ignorarão este Beethoven. Injustamente. Da mesma forma que no irregular Eclipse de uma Paixão (95), Agniezska Holland volta-se neste filme para a temática do artista sofredor. E acerta um pouco mais. Unindo-se pela terceira vez a Ed Harris, que compõe um Beethoven um tanto romântico demais para os padrões da época (como os compositores scapigliati ou “descabelados” italianos de geração posterior), e apesar da história fictícia, o Beethoven de Holland parece trazer muito do Beethoven verdadeiro, que, solitário e já surdo, escreve as obras na imundície de seu apartamento, em meio a ratos, baratas e muita casca de ovo, e não numa corte opulenta e luxuosa como o Mozart do fantasioso Amadeus (84). Nem tem delírios de arrebatamento kitsch como o Beethoven de Minha Amada Imortal (94). Prefere, para compor, ouvir o “silêncio”. Aqui, pouco antes da estréia da majestosa Nona Sinfonia, seu editor envia-lhe uma copista de ouvidos atentos, Anna Holtz (Dianne Kruger), para ajudar na transcrição da obra para os respectivos naipes da orquestra. Uma tarefa nada prosaica para ela, que terá que lidar com o gênio difícil do compositor, capaz de elogiá-la e humilhá-la com a mesma intensidade, num ambiente onde, para complicar, as musicistas são tipos raros. Mas ela ganhará o respeito e a confiança dele, a ponto de ajudá-lo a conduzir a peça no teatro, em um momento altamente fantasioso, mas eficaz para a trama.

O mais interessante de tudo é ver nascer a Nona Sinfonia, com seus famosos motivos brotando um a um até a estréia da obra para a corte de Viena em 1824 e a entrada triunfal do coro no último movimento. Tudo mostrado em cortes rápidos, seguindo o ritmo da música, mas por meio de uma edição que não tumultua o que está sendo visto. Gran finale. Depois, ganha alguns minutos a mais, perde um pouco o compasso e vira um melodrama típico, especialmente quando se concentra em Anna. Ainda assim, questões presentes em filmes anteriores de Holland, como a fé e a gnose de um indivíduo que se acredita ungido por Deus, permeiam o filme, que felizmente não é solene ou carregado, graças, sobretudo, à jocosidade com que Harris empresta ao papel. E, por mais mundano que Beethoven pareça, ele é dotado de sincera devoção que até acreditamos que Deus fale através dele ou de suas músicas, como na cena em que compõe sua derradeira obra. Não à toa, cruzes, freiras e até um padre são vistos várias vezes ao longo do filme. E Beethoven, católico remisso, chega até a ser banhado/batizado em momento-chave da narrativa, em sua tão esperada redenção. Chato, dirão alguns. Eu não acho. Além do mais, é sempre emocionante ouvir (mais uma vez) a Nona de Beethoven e também outras composições dele.

Presente de Natal

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Charada

(Charade, EUA, 1963)

Derivação bem-sucedida dos filmes de Alfred Hitchcock, mas que anda com pernas próprias graças ao charme da dupla principal, à direção firme de Stanley Donen, que permite que a química entre Cary Grant (ator de filmes de Hitch) e Audrey Hepburn emane com a maior naturalidade, e ao roteiro, que garante diálogos afiados e as inesperadas reviravoltas na trama. Talvez não tão inesperadas, mas tudo tão sofisticado que, graças ao conjunto, deixa-se levar sem esforço pelos desdobramentos do enredo. Na história, em Paris, Hepburn se descobre subitamente viúva. O marido Charles Lampert fora assassinado. Descobre também que está sendo perseguida por três cúmplices do falecido. O motivo ou “McGuffin”: uma considerável soma de dinheiro que Charles teria roubado quando cumpria uma missão perigosa como soldado ao lado de outros combatentes a serviço do governo americano na II Guerra Mundial. Esses homens sinistros que a perseguem são os tais colegas de Charles, interessados no paradeiro da grana. Mas ela conta com a ajuda do americano Grant, tipo elegante que conheceu numa estação de esqui na Suíça, mas também suspeito de mão cheia. Também a auxilia um agente da embaixada americana de Paris (Walter Matthau). E um inspetor da polícia francesa, desconfiadíssimo de tudo, também a procura. Quantos homens interessados numa só mulher, hein! Bom, sendo Audrey Hepburn a mulher isso explica muita coisa. Mas mais cadáveres tornam a aparecer, e nem tudo é o que parece, mesmo que, no final das contas, se pareça sempre com Cary Grant.

Ângulos de câmera, enquadramentos, montagem, trilha sonora e até a abertura mimetizam Hitchcock. Assim, o filme, nunca paródia, sempre uma homenagem, mantém o suspense, sobretudo na seqüência nos telhados de Paris e no tiroteio final, por exemplo. Mas o que faz mesmo o filme caminhar, mais que o dinheiro ou a verdade sobre Charles, é o interesse constante que lady Hepburn nutre pela covinha no queixo de Grant e a súbita vontade de vê-lo tomar banho, ainda que totalmente vestido, arruinando o terno, numa cena antológica. Foi refilmado/homenageado por Jonathan Demme, em O Segredo de Charlie (The Truth About Charlie, 2002), que trazia Mark Wahlberg e Thandie Newton nos papéis principais e muita influência da Nouvelle Vague na maneira de (re)contar a história. Os franceses acham o máximo.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

O melhor filme do ano!

Malick/Wagner: perfeita simbiose.

Pistoleiros do Entardecer

(Ride the High Country, EUA, 1962)

Sam Peckinpah ficaria conhecido pelo parcial rótulo de cineasta da violência, em filmes como Meu Ódio Será Tua Herança (69), Sob o Domínio do Medo (71), Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (74) e A Cruz de Ferro (76). Filmava mortes e tiroteios com o ostensivo uso da câmera lenta. Mas antes este belíssimo western sobre o fim do gênero, reunindo em seu elenco dois de seus maiores ícones: Randolph Scott (em seu último filme) e Joel McCrea.

McCrea é ex-homem da lei Steve Judd contratado para transportar uma remessa de ouro em território hostil. Num mundo que se moderniza, xerifes a cavalo como ele são tipos raros, ultrapassados pelos automóveis, que fazem questão de cortar seu caminho, em momento-chave logo no início do filme. Pobre, com as mangas puídas e os sinais do tempo impressos no rosto, ainda assim mantém a dignidade num lugar onde todos parecem desdenhar de seu tipo antiquado. Para escoltá-lo na tarefa de alto risco, contrata um antigo conhecido, Gil Westrum (Randolph Scott), também um caubói do passado que hoje sobrevive como atração de um parque de diversões. Junta-se a eles o jovem intempestivo Heck Longtre (Ron Starr), protegido de Gil. Porém, o que não passa pela cabeça de Judd é que Gil, velho pilantra, e Heck pretendem roubar o ouro.

No caminho, une-se a eles a jovem Elsa Knudsen (Mariette Hartley), que decide acompanhá-los para poder escapar do seu rígido pai, Joshua Knudsen (R.G. Armstrong), um pregador religioso, e se casar com Billy Hammond (James Drury), um mineiro nada religioso, no garimpo de Ouro Bruto. Após a cerimônia, feita num bordel, em meio a rudes mineradores e por um juiz de paz para lá de bêbado, Elsa percebe o equívoco cometido, pois Bill é um homem violento e seus irmãos, mais ainda. Assim, Gil dá um jeito para que o matrimônio seja considerado nulo e os quatro saem dali. No caminho, Judd descobre a traição, uma de suas maiores decepções na vida, mas evita o roubo e prende os dois. No entanto, Bill e seus irmãos os perseguem, pois querem Elsa de volta a qualquer custo, o que desembocará no tiroteio final que unirá novamente Gil e Judd.

Peckinpah, em seu segundo filme para o cinema, pavimenta aqui a trilha do western crepuscular que marcaria outros de seus trabalhos, especialmente Meu Ódio..., A Morte não Manda Recado (70), Junior Bonner (72) e Pat Garrett e Billy The Kid (73). Mas sem a violência do primeiro. Tudo é conduzido de maneira clássica, como nos westerns dos anos 50, cuja era de ouro parecia mesmo chegar ao fim, apesar do revival do gênero na Europa e seus erzätze mais estilizados. O melhor do filme são as conversas entre Judd e Gil durante a viagem, em que relembram o passado em comum com humor e certa dose de melancolia, o que imprime ao trajeto um tom memento mori (“lembre-se de que vai morrer”). Ao final, no entardecer do feliz título brasileiro, tombam os ícones, num fecho poético dos mais belos da história do cinema.

O ladies, ladies!

It IS the pretty face which creates sympathy in the hearts of men, those wicked rogues. A woman may possess the wisdom and chastity of Minerva, and we give no heed to her, if she has a plain face. What folly will not a pair of bright eyes make pardonable? What dulness may not red lips and sweet accents render pleasant? And so, with their usual sense of justice, ladies argue that because a woman is handsome, therefore she is a fool. O ladies, ladies! there are some of you who are neither handsome nor wise.

William Makepeace Thackeray (Vanity Fair, Chapter XXXVIII, Penguin Classics)

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Insomnia

Madrugada. Ansiedade. Calor. Clima perfeito para uma insônia daquelas. E na TV, no Intercine, uma peróla histórica, “homenageada” por Lucia Murat em Olhar Estrangeiro: Lambada – A Dança Proibida, produzida a toque de caixa pelo picaretão Menahem Golam, da prolífica Cannon Group, aproveitando a onda da canção da Kaoma na Europa em 90. No elenco, em meio a índios brasileiros fake com cocar apache, a sexy “nativa” Laura Elena Harring (Mulholland Drive) como estrela e o cult Sid Haig (de Rejeitados pelo Diabo). A truly masterpiece! Engraçado que vista hoje em dia e, comparada ao funk, a lambada parece uma valsa em sua graciosidade! Já no SBT, a jóia de fato, Endurance – A Persistência de um Atleta (99), sobre um corredor e suas origens humildes na Etiópia até a conquista da medalha de ouro nos 10 mil metros nas Olimpíadas de Atlanta. A típica história do vencedor que supera todas as dificuldades. Mas contada de maneira diferente, como docudrama por Leslie Woodhead e Bud Greenspan, com fabulosa trilha sonora de Hans Zimmer e produção de ninguém menos que Terrence Malick, cujo estilo permeia muitas das cenas. Pena que nunca tenha sido lançado em DVD.

Tinha curiosidade de ver ambos os filmes. Claro que o primeiro era uma curiosidade pra lá de mórbida, ainda mais depois do documentário de Murat. Acho que às vezes os filmes nos perseguem. E depois de Lambada, que venha então a exibição do lambido Orquídea Selvagem na madrugada! E sem cortes, por favor!

O melhor filme do Cacá!!!

Eu sei que muitos já viram. Ah, veja de novo, vai. Ria de novo. Como diria Paulo Francis, brasileiro é ótimo no humor grosso.

terça-feira, dezembro 19, 2006

Cassino Royale (Casino Royale, EUA/Alemanha/Reino Unido/República Checa, 2006)


Sim, eu sei, tem gente que gosta da paródia de 67, com um dos maiores elencos de todos os tempos. Mas que filme era aquele, hein!

Já Cassino Royale, o novo 007, é tudo aquilo que andam dizendo de bom sobre ele. “Terrific”, “Bombastic”, “Sensational”, “A Marvelous Return”, etc. E melhor, o novo ator a interpretar o James Bond is just like Lord David himself: alto, loiro, irritadiço e com especial apreço por mulheres casadas. Bem, nem tanto apreço assim. Ao contrário das más críticas, Daniel Craig tem sim o physique du rôle adequado para Bond, encarnando-o com a habitual elegância que caracteriza o personagem, mas sem esquecer de que é também um assassino frio e violento. E, bem ao contrário do jeitão paródico de filmes anteriores, reinventa-se a série, indo direto às suas origens literárias e justamente na história inaugural de Ian Fleming, em que o personagem recebe sua muito útil licença para matar. Por isso, a abertura é mais sombria, sem firulas, num apropriado preto e branco. Há menos engenhocas, menos ironia e as lutas são brutais e violentas. O grande mérito aqui é não tornar Bond um ninja voador suspenso por fios invisíveis, nem os efeitos especiais um acúmulo de simulacros digitalizados. Assim, as cenas de ação são intensas, mais físicas, bem-editadas, e Martin Campbell, da mesma forma que em Goldeneye, prova mais uma vez que sabe como ninguém pôr abaixo patrimônio histórico. Mas, superiores às cenas de correria e parkour são mesmo as cenas dramáticas, que vão do tenso jogo no cassino ao relacionamento de Bond com Vesper Lynd (Eva Green), especialmente no primeiro contato entre eles no trem e quando ele a consola no chuveiro, após fazer “discreto” uso de sua licença bem diante dela.

Há o chauvinismo de Bond, mas há também a disposição dele em se entregar ao amor, como em A Serviço Secreto de Sua Majestade (1969). Por isso, não à toa, na seqüência em que persegue um inimigo em meio a cadáveres plastificados (as famosas esculturas de resina e “gente” do Dr. Gunther von Hagens) força-se uma aproximação entre Bond e o mundo de pessoas de carne e osso, vulneráveis, fragilizadas, além de antecipar detalhes importantes da narrativa. E há também um vilão que, por mais inserido na realidade mundana do pós-11 de setembro, sem o glamour antigo de um agente da SMERSH, pega Bond de jeito pelos colhões, com a mesma vontade de castrá-lo que o laser de Goldfinger do filme homônimo de 64. Ah, e Eva Green vale todo o resto.

Joseph Barbera (1911-2006)

Ano crepuscular. Mais um epitáfio. Um mundo menos animado. Deixa filhos queridos: Tom & Jerry, The Flintstones, Scooby Doo, The Jetsons, A Turma do Zé Colméia et alii.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

"Corto el amor, largo el olvido"

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos».

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.


Pablo Neruda (Poema 20, de Veinte poemas de amor y una canción desesperada, 1924)
A Fera do Forte Bravo (Escape from Fort Bravo, EUA, 1953)

Panorâmicas do deserto, ainda sem o CinemaScope. Cores mais realistas, que prefiguram o Eastmancolor. Eleanor Parker. Eleanor Parker. Eleanor Parker. Uma emboscada final dos índios apaches mescaleros. Eleanor Parker. E chovem flechas. Um, dois, três dias seguidos. E com Eleanor Parker no meio.

Típico western de John Sturges, aquele dos samurais que viraram caubóis. Sete deles, um careca, e que depois inspirariam o mundo de Marlboro. E aquele da grande fuga de moto de Steve McQueen dos nazis. Mas antes, este western ranzinza, que também trata de fuga e ainda de Guerra Civil, apaches, deserto e William Holden como um oficial também ranzinza da União. Aqui, é encarregado de capturar soldados confederados, num território hostil no Arizona, dominado por apaches mescaleros de um lado e pela guerra de outro. Amante das rosas, trata subordinados e cativos de uma maneira um tanto espinhosa. E já começa o filme arrastando um rebelde confederado com seu cavalo, o que gera antipatia tanto entre colegas, quanto entre inimigos mantidos prisioneiros no Forte Bravo do título. Entre flechas e tiros, mais um perigo: a chegada de uma mulher, Eleanor Parker. O bruto vira um cavalheiro na presença da lady. Mas nenhuma lady é tão legal assim. Ela é uma espiã texana a serviço de Dixie, com a incumbência de libertar alguns dos confederados durante um casamento. Consegue, claro. Mulheres assim conseguem tudo. E foge junto com eles, um deles seu antigo noivo. Holden parte para caçá-los. Mas atrás de quem ele está? Dos soldados? Ou de Eleanor Parker? Captura-os e, no caminho de volta para Forte Bravo, são encurralados pelos mescaleros, que não vão sair dali enquanto não aniquilarem todos, num cerco impiedoso, onde demonstram grande habilidade para a arte da emboscada.

Os filmes de Sturges são sempre melhores nos tiroteios, na ação, no espetáculo. Seu cinema é o cinema do deslocamento e da tensão causada pela espera, como na seqüência final do ataque e toda a estratégia bem delineada dos peles-vermelhas. Neste momento, o filme garante maior interesse, unindo opostos pela sobrevivência e encarregando-se de manter a química entre Holden e Eleanor Parker, elemento feminino que, da mesma forma que nos filmes de Howard Hawks, entra para causar instabilidade num universo macho. Não à toa, o equilíbrio só se restabelece quando Eleanor Parker aparece ao final trajando roupas de caubói. E que belo caubói é essa Eleanor Parker, eu não me canso de repetir.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Feliz Natal (Joyeux Noël, França/Reino Unido/Alemanha/Romênia, 2005)


Convencional até a medula. Indicação para Oscar, essas coisas. 1914. Ânimos nacionalistas acirrados. Primeira Guerra Mundial. Trincheiras, mortes e mais mortes. Bum! Um cantor de ópera alemão. Canta Noite Feliz na véspera de Natal. Comovente. Trégua. Champanhe. Ajuda mútua. Champanhe. Uísque, também. Alles Bier auch. Missa ecumênica entre os inimigos, que se confraternizam, jogam futebol, enterram os mortos. Franceses honrados. Alemães honrados. Escoceses honrados. Superiores exaltados. Fim da celebração. Retomada da Guerra. Em meio a tudo isso, humanismo ongueiro à União Européia e sem Papai Noel. Não dá para falar muito. Já saiu de cartaz. Ninguém viu. Ponto final.
O Monstro do Mar Revolto (It Came from Beneath the Sea, EUA, 1955)

Produção B das mais eficazes. Boa parte de seu clima convincente deve-se ao realismo buscado logo no começo do filme, que inclui cenas documentais de um submarino nuclear lançado ao mar e recriação fiel do trabalho dos marinheiros e seu jargão no navio quando atacado pelo monstro do título, na verdade um polvo gigante trazido das profundezas do oceano por causa de testes nucleares da Bomba-H. Além de gigantesco, o polvo é radioativo e imune a armas convencionais. Faminto, passa a atacar embarcações no Pacífico até atingir São Francisco, onde faz os esperados estragos na ponte Golden Gate e em outros cartões postais da cidade. Para detê-lo, mobiliza-se uma força militar liderada pelo capitão do submarino Pete Mathews (Keneth Tobey) e pelos cientistas Lesley Joyce (Faith Domergue) e John Carter (Donald Curtis).

Um subtexto erótico é explorado nas conversas entre os três líderes, especialmente quando falam sobre lagostas e mergulhos a dois no mar Vermelho, com vantagem para o capitão. Seu interesse em capturar o polvo deve-se principalmente à vontade de trazer para seus “tentáculos” a bela cientista. Antes de um ataque da criatura, chega-se até a parodiar, entre eles, a famosa cena do beijo na praia entre Burt Lancaster e Deborah Kerr, em A Um Passo da Humanidade (1953). Mas o que faz o filme caminhar são mesmo os ataques do molusco e as tentativas de pará-lo. O suspense é construído aos poucos. O monstro não aparece logo de cara (como mandava a cartilha dos bons filmes da B da época); é só mancha escura no radar do submarino. Depois, um ou outro tentáculo à mostra e, por fim, visto por inteiro em São Francisco, num notável trabalho de animação em stop motion de Ray Harryhausen, mago dos efeitos especiais da época, e que depois ficaria encarregado de “destruir” Washington em A Invasão dos Discos Voadores (Earth vs. The Flying Saucers, 1956). Por causa das restrições orçamentárias, o polvo teve que ser construído com apenas seis tentáculos. Mas, sendo seis ou oito, não importa. A destruição é a mesma, afinal a criatura verga a Golden Gate, ponto preferido dos suicidas americanos, com uma facilidade impressionante.

Fácil falar que, 50 anos depois, os efeitos especiais envelheceram, que os personagens são superficiais, especialmente os burocratas, de uma estupidez eqüina, mas o trabalho de Ray Harryhausen, a direção de Robert Gordon, que soube aproveitar o orçamento reduzido na composiçao cuidada de cada enquadramento, e alguns divertidos diálogos fazem deste um charmoso clássico para quem tem olhos para apreciá-lo, numa época fecunda em filmes com as mais sortidas criaturas gigantes e radioativas destruindo tudo pela frente, como O Mundo em Perigo, de Gordon M. Douglas (Them!, 1954), Tarântula, de Jack Arnold (Tarantula, 1955), além dos inúmeros exemplares da série japonesa Godzilla (ou "Godjira").

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Filhos da Esperança (Children of Men, Reino Unido/EUA, 2006)

No lugar de um mundo dominado pela utopia tecnológica, Alfonso Cuarón cria, nesta adaptação da obra de P.D. James, uma visão futurista da humanidade bem mais convincente, por ser próxima à realidade dos dias de hoje. Ou seja, mergulhada em colapso e escassez onipresentes, da mesma forma que Richard Fleischer concebera para a Nova Iorque de No Mundo de 2020 (1973). Mas aqui, em vez da Nova Iorque superpovoada, uma Londres esvaziada. O motivo: há 18 anos não se registra o nascimento de uma única criança. Por isso, o mundo mergulha em caos social e as nações desmoronam. O Reino Unido, graças a um governo totalitário e repressor, é o único lugar que resiste, mesmo sacudido por atentados ou sitiado por milhares de imigrantes, não somente árabes, africanos ou russos, mas também alemães, muitos alemães, e que são mantidos enjaulados ou impedidos por cercas de entrar na ilha. Uma imigrante ou Fúgi, no entanto, aparece milagrosamente grávida e é protegida por uma organização extremista, The Fishes, liderada por Julian (Julianne Moore). O burocrata Theo Faron (Clive Owen), ex-ativista e ex-marido de Julian, após seqüestro, é pago para escoltar a grávida Kee (Clare-Hope Ashitey) até o litoral, onde ela embarcaria no navio Tomorrow (êta nominho óbvio!) de um tal “The Human Project”, cuja existência pouco se sabe a respeito, mas que representaria uma esperança para a (re)fertilização da humanidade.

Nesse périplo, apesar de passadas em 2027, várias cenas evocam a nossa época, como Guantánamo ou detenções em massa de imigrantes na fronteira dos Estados Unidos, por exemplo, e a deterioração urbana característica de cidades como México, São Paulo, Calcutá e outros “paraísos”. Mas evita, ao menos, o discurso panfletário. A câmera de Cuarón, em longos planos-seqüência, num notável trabalho de fotografia de Emmanuel Lubezcki, limita-se tão somente a mostrar esses bolsões de caos, onde nem o governo, nem os radicais parecem saber o que fazer para lidar com a situação, apelando sempre para as armas e para a matança.

Apesar do detestável subtexto “riponga” percorrendo a história, contrário ao que P.D. James teria imaginado (na verdade uma alegoria cristã), o filme, enxuto e tenso, prende a atenção, especialmente na cena da perseguição da moto ao carro, vista inteiramente de dentro do carro. E também, ponto alto do filme, a longa seqüência de tiroteio, com a câmera de mão acompanhando Theo e Kee fugindo do fogo cruzado.

Mesmo com o otimismo sinalizado e exaltado pela gravidez de Kee, ao final, o desfecho é um tanto incerto, parece dizer o diretor. Pouco se sabe se a humanidade terá sobrevida, pois o filme termina distanciado e envolto em densas névoas de incerteza, literalmente.

Peter Boyle (1935-2006)

Táxi Driver, O Jovem Frankenstein, O Candidato e o patriarca Frank Barone, de Everybody Loves Raymond.

quarta-feira, dezembro 13, 2006

A Importância de Ser Honesto
(The Importance of Being Earnest, Reino Unido, 1952)

Lorde David é um esnobe e tem dias que sai à procura de um filme que melhor retrate suas aspirações fantasiosas. Encontrou-o, dia desses, nesta clássica adaptação da peça de Oscar Wilde sobre trocas de identidades e os mal-entendidos decorrentes disso, levada com charme por Anthony Asquith e defendida por um elenco irreprochável.

Em seu preâmbulo, o filme não nega suas origens teatrais, com o público se ajeitando nos camarotes e uma grande cortina abrindo-se no palco de um teatro londrino, dando início ao espetáculo, na verdade uma comédia de situações e das mais engraçadas. Descortina-se então a história do solteirão rico Jack Worthing (Michael Redgrave), que às vezes se passa por Ernest (ou Earnest/Prudente do título original, num dos inúmeros trocadilhos que percorrem o texto). Isso intriga seu amigo, o todo endividado Algernon Moncrieff (Michael Denison), que quer saber “por que diabos ele é Ernest na cidade e Jack no campo”. No campo, ele responde, uma pessoa diverte as outras, tipo os vizinhos. Tudo muito chato. Na cidade, diverte a si mesmo. No campo, Jack também é tutor da jovem Cecily Cardew (Dorothy Tutin) e, devido à alta respeitabilidade exigida para um tutor, inventa ter um irmão de nome Ernest vivendo em Londres como pretexto para escapar do tédio de suas obrigações na propriedade rural de Shropshire. Um perfeito “Bunburista”, nas palavras de Algernon, referindo-se a Bunbury, seu irmão igulamente inventado a quem costuma “visitar” a fim de dar também escapulidas menos nobres. Jack está apaixonado pela prima de Algy, Gwendolen Fairfax (Joan Greenwood), que sempre quis casar-se com alguém de nome Ernest. O “Ernest” pretende pedi-la em casamento na presença da tia, a rígida Lady Bracknell (Dame Edith Evans), que submete Jack/Ernest a uma letal audiência que o deixa desconcertado, desaprovando, claro, a aliança, pois Jack não tem pais. Fora achado numa maleta de mão num guarda-volumes da estação Vitória. Lady Bracknell jamais daria consentimento a um casamento onde um dos cônjuges tem como progenitores uma bolsa de mão apenas, “tenha ela alças ou não”. No campo novamente, Algy aproveita a ausência de Jack e visita Cecily fingindo ser Ernest, o misterioso irmão sobre quem Cecily, fascinada, ouvira de Jack todo tipo de histórias. Ernest, ou melhor, Algy pede-a em casamento. Ela aceita imediatamente, pois como diz uma muito sábia Lady Bracknell “noivados longos dão às pessoas a oportunidade de se conhecerem melhor, o que não é nada aconselhável”. Está mais decidida ainda, pois sempre quis casar-se com alguém chamado Ernest. Mas Jack retorna ao campo em roupa de luto, para anunciar a morte do tal irmão Ernest. Arma-se a confusão. Cada mentira segue outra mentira e os personagens vão se complicando em meio a diálogos afiados, alfinetando a excessiva preocupação da classe alta britânica com a aparência, motivo central da peça e do filme, conforme diz Lady Bracknell em determinado momento: “Vivemos numa época de aparências”. Hoje e sempre, claro.

O filme pode parecer tradicional demais, sobretudo em seu desfecho, onde se aprende a importância de ser “Prudente”. No entanto, é o cinismo e a deliciosa soberba britânica dos diálogos que fazem o texto ganhar vida num filme que caminha sempre com um leve ar de superioridade, mas sem afetação, como se os personagens estivessem lá apenas como pretexto para que Wilde himself destilasse sua fina ironia, sem poupar criados, nobres, pastores ou babás. Tudo num esplêndido Technicolor.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Zona de Conflito (Encounter Point, Israel/EUA, 2006)


Em Free Zone (2005), de Amos Gitai, Hannah (Hanna Laslo), em trajeto pela Jordânia, diz à personagem de Rebecca (Natalie Portman) que a única certeza em Israel é a guerra. Em Munique (2006), de Steven Spielberg, a vingança do governo israelense contra palestinos que mataram atletas da delegação do país nas Olimpíadas de 72 conduz a um ciclo sem fim de matanças, perpetradas pelos dois lados. Recentemente, centenas de mísseis disparados pelo Hizbollah, mais o seqüestro de três soldados israelenses, levaram Israel a bombardear os redutos ocupados pela guerrilha no sul do Líbano e em Beirute. Para os maniqueístas de plantão, judeus são os novos nazistas e os palestinos, os terroristas ou guerreiros a serviço de uma causa libertária, não importando o grau de violência empregada ou se civis são atingidos pelo fogo cruzado em Gaza ou destroçados por homens-bomba no mercado de Jerusalém ou Tel-Aviv. Enfim, uma causa que dilacera a todos e que deve ser vista além das simplificações ou mistificações da mídia e dos políticos.

Exibido na última Mostra de SP, Zona de Conflito é um documentário que joga um pouco mais de luz nessa interminável guerra. Como todo documentário, compõe-se basicamente de entrevistas com pessoas dos dois lados do conflito. A diferença é que aqui, em vez das habituais palavras de ódio, busca-se o entendimento mútuo, pois todos os entrevistados, tanto israelenses, quanto palestinos, têm em comum o fato de terem perdido familiares nessa guerra. Assim, as famílias dos dois lados promovem encontros regulares num centro comunitário de Jerusalém, buscando compartilhar essas trágicas experiências, esquecer o ódio e lançar sementes de paz para futuras gerações. Entre os entrevistados, chama a atenção o depoimento do articuladoAli Abu Awwad (foto), um palestino que cumpriu pena de vários anos em prisão israelense por participação na primeira Intifada, teve parentes que sofreram nas mãos (e botas) dos soldados de Israel e, mesmo assim, diz em palestras nas escolas dos territórios palestinos que ele, como adepto hoje da não-violência, não precisa amar os israelenses para viver em paz com eles, pois acredita que a tática do terror empregada pelos palestinos está equivocada, pois dela só advém mais sangue. No final, encontra-se com um ex-colono judeu que deixou os assentamentos na Cisjordânia por achar injusta e imoral a ocupação e que hoje tenta, da mesma forma que Awwad, convencer outros colonos a fazer o mesmo, o que dá ao documentário um desfecho otimista. Há outras histórias comoventes ao longo do filme, mas mais comovente é o empenho de lados opostos em se encontrarem, discutirem propostas de paz, ainda que em pequena escala, ou apenas conversarem sobre banalidades, demonstrando que palestinos e israelenses, ainda que em pequena proporção, fazem parte da mesma humanidade e compartilham as mesmas esperanças de entendimento.

Mas o mundo dos homens sempre foi um lugar injusto. Eu pessoalmente não acredito num desfecho feliz para esse conflito, pois todo tipo de negociação feita até hoje só resultou em impasse e mais confrontos. Ainda assim, o filme, dirigido pela israelense Ronit Avni e pela brasileira Julia Bacha (montadora de Control Room) vale como uma demonstração e tanto de alteridade, da mesma forma que Promessas de Um Novo Mundo, de Carlos Bolado, Justine Shapiro e B.Z. Goldberg (2001), e Notícias do Lar/Notícias de Casa, de Amos Gitai (2005).
O Crocodilo (Il Caimano, Itália/França, 2006)


O cinema é fantasia, mas também plataforma para reflexão política. Da mesma forma que em Caro Diário e Aprile, Nanni Moretti junta as duas coisas neste metalingüístico O Crocodilo, sem esquecer do humor. Aqui, menos narcisista, faz uma crítica direta ao governo marcado pela corrupção do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, o cidadão Kane italiano, histriônico, magnata da mídia e do futebol, ao centrar foco no produtor Bruno Bonomo (Silvio Orlando), responsável por dezenas de produções de baixo orçamento comuns na Itália dos anos 60 e cujas histórias (como “Cataratas” e “Freud Versus Maciste”, por exemplo) só servem para entreter seus filhos hoje em dia. Em baixa, ainda que homenageado com um tanto de sarcasmo num festival de cinema como o “homem que inventou o cinema de gênero bem antes de Tarantino”, e com a sua produtora indo à bancarrota, ele ganha uma chance de voltar ao batente numa produção épica sobre Colombo para a RAI. Assim, sem mais, oferece ao executivo da emissora o roteiro de um longa de uma jovem e idealista cineasta (Jasmine Trinca) sem ter lido todo o material. Mas trata-se de uma sátira à ascensão de Berlusconi, il Caimano do título original, quando ninguém tinha coragem de criticá-lo. Ainda assim, a produção começa e os problemas vão se somando: inexperiência da novata diretora-roteirista, atores que desistem do papel principal, cortes no orçamento, além do desmoronamento do casamento de Bruno com a atriz e heroína de seus filmes, o que o deixa desesperado.

A crítica política segue paralela às tentativas do produtor de erguer o filme a todo custo, alternando cenas do longa a ser produzido com imagens verídicas de Berlusconi expondo a nação italiana ao ridículo, como num célebre pronunciamento em que constrangeu o Parlamento Europeu ao convidar um deputado alemão a interpretar um nazista para um filme. Ao final, o “Crocodilo” da diretora estreante finalmente ganha forma, “sai da água”, e o filme assume de vez seu caráter panfletário, feroz, com a presença do próprio Moretti interpretando Berlusconi, num desfecho amargo, verborrágico, que destoa do bom humor do restante da narrativa. Ainda assim, em seus melhores momentos, O Crocodilo é uma bela homenagem ao cinema italiano e suas várias vertentes (política, social, exploitation, imitação barata de similares americanos ou tudo junto) e ao cinema em geral e vale sobretudo pelos momentos cômicos, divertidíssimos, proporcionados pela tragicômica atuação de Silvio Orlando como um picareta de bom coração capaz de soluções à Roger Corman para viabilizar qualquer filme B, seja de piratas (rodado numa piscina), seja esta sátira política, feita com cenários reaproveitados, como os antigos westerns que produzia.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

RKO 281 (EUA/Reino Unido, 1999)

Goste-se ou não, Cidadão Kane, o primeiro trabalho para o cinema do então jovem Orson Welles, é considerado um dos maiores filmes de todos os tempos. É inegável a força de sua narrativa não-linear, que contava a ascensão e queda de um magnata da mídia por meio de longos planos-seqüências, engenhosos travellings, inovador uso da profundidade de campo hierarquizando os personagens em cena (e que consumiam tanta luz que derretiam as estátuas de cera do cenário), do contre-plongée (câmera colocada numa posição mais baixa, filmando os personagens de baixo para cima; em "Kane", literalmente enterrada no chão), do teto rebaixado, do “chicote” na passagem de cenas, da trilha sonora perfeitamente integrada à história, criando descompassos, e outras inovações. Mas, por pouco essa obra-prima não foi destruída por pressão e chantagem de William Randolph Hearst, publisher e dono dos maiores jornais nos EUA, em quem Orson Welles havia se baseado para escrever o roteiro junto com Herman J. Mankiewicz. Este episódio é retomado neste telefilme da HBO, dirigido por Benjamim Ross (de O Livro Secreto do Jovem Envenenador, 1995).

Como é sabido, Welles (Liev Schreiber), então com 24 anos, era o gênio, ator, diretor de teatro e “ilusionista” de Nova Iorque contratado para rodar seu primeiro filme para a RKO (produção de número 281), após o conhecido e muito falado episódio da transmissão para o rádio de A Guerra dos Mundos. Da gênese do projeto de “Kane” à quase destruição dos negativos do filme e, por fim, a exibição nos cinemas, foram quase dois anos de batalha contra o estúdio, contra os produtores de outros estúdios e, sobretudo, contra Hearst.


O filme da HBO procura mimetizar aspectos formais do filme original, como o documentário que o abre e a composição de algumas cenas, mas, curto, rodado de maneira convencional, não aprofunda muito os personagens, nem Welles, nem Hearst. O melhor de todos em cena é o Mankiewicz interpretado por John Malkovich, que encarna com cinismo e melancolia as ironias do mundo do cinema da mesma forma que o personagem do roteirista vivido por Humphrey Bogart em A Condessa Descalça, do irmão Joseph L. Mankiewicz. Mas, ainda assim, serve de complemento ao superior documentário A Batalha por Trás de Cidadão Kane (1996), que relata com riqueza de detalhes e mais dinamismo esse episódio. E os momentos que acompanham a gestação de Cidadão Kane, especialmente as discussões no set entre o obsessivo Welles e o fotógrafo Gregg Toland (Liam Cunningham), dão mostras interessantes do que é fazer um filme e o quanto certas escolhas na hora da filmagem muitas vezes dependem mais do acaso e da intuição que do planejamento.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Olhar Estrangeiro (Brasil, 2006)

Olhar Estrangeiro é o curto documentário em que Lúcia Murat, diretora de Quase Dois Irmãos (2004), busca discutir de forma crítica, como o título indica, a visão do Brasil retratada nos filmes estrangeiros. Olhar estereotipado, conforme demonstram as imagens de mulheres de topless na praia no americano O Feitiço do Rio (Blame it on Rio, 1984), de Stanley Donen, que abre o filme. Ou a macumba carnavalesca sexual de Orquídea Selvagem (Wild Orchid, 1990), de Zalman King. Ou, ainda pior, a lambada protagonizada por índios fake de Lambada – A Dança Proibida (The Forbidden Dance, 1990), filme tão passageiro e esquecível quanto o fenômeno que o “inspirou”. O retrato do Brasil como uma visão do paraíso, pleno de festas, carnaval, mulheres bonitas e bundudas, onde ninguém trabalha e só se diverte, é corroborado por curtos depoimentos de turistas de diferentes nacionalidades que entrecortam o filme. Não há muita novidade no que é apresentado. O recorte dos filmes escolhidos para ilustrar esse ponto de vista também não é lá muito vasto. Muitas das produções mostradas são picaretagens de orçamento baixo, como a já citada Lambada, rodada em menos de um mês para pegar carona na dança que era coqueluche na Europa. E o grande sucesso Anaconda, além de uma produção francesa dos anos 80 que trazia Roberta Close mal-dublada em meio a cenários sempre carnavalescos (pra variar!).

Mas, por outro lado, qual seria a contribuição dos brasileiros na construção desse olhar estereotipado? Qual não seria também a “culpa do Rio” nisso tudo, ao vender-se para o mundo como o paraíso de turismo carnavalesco? Ou ainda de nossas “otoridades” e acadêmicos ao recorrer ao desgastado discurso samba-exaltação para falar do “caráter único do povo brasileiro”? E se esse Brasil fosse um mundo imaginário, uma ilusão criada pelo cinema, arte da ilusão por excelência? Isso tudo não se menciona, ou é brevemente citado em algum relato perdido entre muitos outros. Ainda assim, dos EUA a Suécia, há bons depoimentos, como o do roteirista de Blame it on Rio, que reconhece parte da culpa na construção dos clichês como imposição dos executivos de Hollywood, ou as bem-humoradas declarações de um Michael Caine relaxado, dizendo que se os brasileiros fossem mais feios seriam mais respeitados, pois de onde ele vinha, na Inglaterra, todos eram muito feios e hoje ele é respeitado. E Jon Voight, protagonista de Anaconda, é simpático e respeitoso. Evita cair na insistente conversa da diretora de, por meio de um jogo de palavras, associar “sexo” a topless ou bundas, como seria de se esperar. Brincando, cita apenas Charlton Heston para tudo, a fim de evitar cair no clichê do paraíso sexual.

Se o registro do Brasil nessas películas é superficial, limitado à praia ou à selva com nativos fluentes em espanhol, ou tudo junto, o olhar da brasileira Murat não fica muito distante disso. Mesmo uma honrosa exceção, como a vinda para cá de Orson Welles nos anos 40, que Rogério Sganzerla tão bem retratou em seus filmes, é mencionada brevemente e por meio de fotos ou arquivos de som. E o fenômeno Carmen Miranda, que contribuiu para sedimentar essa visão “brasileira” entre os americanos ao participar de divertidos filmes hollywoodianos dos anos 40, não ganha mais que alguns minutos.

Murat poderia ter ido além do cinema, buscado as formas de representação do país pelo olhar estrangeiro de pintores e fotógrafos que aqui aportaram e também deram sua contribuição para a construção de uma iconografia sobre o Brasil (ou “Brazil” ou “Brésil”). Mas isso deixa para um outro filme. E engraçado que, por recuperar várias produções gringas esquecidas, pode acabar despertando em muita gente, brasileiros inclusive, a curiosidade de assisti-las. Acredito que picaretagens sempre ensinam algo. Que venha então "Turistas"!

quinta-feira, dezembro 07, 2006

A Carta (The Letter, EUA, 1940)

Melodrama sombrio levado com a habitual classe por William Wyler. Grande parte de seu status deve-se à interpretação de Bette Davis, que consegue ser fria, passional, manipuladora, triste, sexy e dissimulada de acordo com as circunstâncias e mesmo quando acuada. Aqui, como mulher de um alto funcionário de uma companhia britânica de borracha, em plena noite de lua cheia e aos olhos dos nativos de uma plantação de seringueiras na Malásia colonial, é flagrada esvaziando o revólver em Geoffrey Hammond (David Newell). No depoimento à polícia, diz que Geoffrey, bêbado, tentou violentá-la, sendo obrigada a agir em legítima defesa. Mas uma carta em posse da então viúva asiática de Geoffrey (Gale Sondergaard) revela uma ligação antiga entre ambos, pondo em dúvida seu depoimento, e em risco o casamento com o honesto Robert (Herbert Marshall).

Na verdade, o que move a história é o ciúme de uma mulher, Davis, que provoca o assassinato, levando à vingança da viúva. Uma age em plena luz da lua cheia. A outra aparece pouco, prefere a penumbra, conforme os planos que abrem e fecham o filme e que pontuam momentos-chave da narrativa. Nada mais perigoso que sentimentos femininos contrariados e em disputa. E os homens movem-se pela maquinação de ambas, o que leva o advogado de defesa de Davis (James Stephenson), um indivíduo de princípios, a mentir e ceder a expedientes menos nobres, como chantagem, para ocultar evidências que possam incriminá-la.

Como em muitos filmes de julgamento, a verdade só vai prevalecer fora dos tribunais, ou dissimulada entre os seres, assim como a justiça será aplicada fora das cortes, na penumbra e depois sob a indiferença da lua cheia.

Baseado no romance de W. Somerset Maughan, A Carta foi a segunda colaboração de Davis com o diretor (e amante) Wyler, depois de Jezebel (1938). Teve sete indicações ao Oscar, incluindo atriz e diretor. Não ganhou nada, mas demonstrou mais uma vez o prestígio de Wyler para produções exigentes e requintadas (alguns preferem dizer “acadêmicas”, mas discordo) e ajudou a sedimentar a persona má que Davis voltaria a encarnar com mais intensidade em Pérfida (1941), também de William Wyler.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Um Bom Ano (A Good Year, EUA, 2006)


Em Gladiador, o desejo do general romano Máximo é voltar para a casa, para a família, voltar a ser um fazendeiro. Ou seja, retornar às raízes, depois de anos servindo com honra o imperador Marco Aurélio. Há o retorno, mas ele é tumultuado, o que dará outro rumo a sua vida, e dessa vez sem volta, selando o seu destino e o de Roma para sempre. Em Falcão Negro em Perigo, soldados americanos tentam voltar para a base, mas caem numa cilada. Alguns não voltarão mais. Em Thelma e Louise, duas mulheres tomam também um novo e inesperado caminho e não mais regressarão para suas vidas “normais”. São aventuras que fracassam, mas onde vale acima de tudo a aventura vivida, ainda que em proporções trágicas.

No mais recente filme de Ridley Scott, Um Bom Ano, aqui num registro mais leve, há também um novo e inesperado caminho surgido na vida do protagonista. É o caminho que leva Max Skinner (Russell Crowe, muito à vontade), típico canalha monetarista e inescrupuloso corretor da Bolsa de Londres, de volta à Provença, terra das férias de sua infância com o tio, o bon vivant Henry (Albert Finney), de quem havia se afastado. Com a morte deste, Skinner recebe a notícia de que agora é dono de todos os bens do falecido naquele local, incluindo a vinícola. Pega a estrada, em situações atrapalhadas, mas sabe-se de antemão que o retorno ao seu habitat de tubarões financeiros de Londres não mais se concretizará, como é bem simbolizado na cena em que o carrinho de Max contorna repetidas vezes uma pracinha em câmera acelerada, sem conseguir sair dali. Naquela região pitoresca do sul da França, tentando vender a propriedade familiar, é tomado por recordações felizes da infância em meio a vinhedos e ensinamentos do tio, que o fazem mudar de idéia, além de conhecer uma prima e encontrar a mulher de seus sonhos, fechando o filme com uma declaração de amor a ela das mais românticas.

Uma história já contada várias vezes, certo? Sim, mas admiravelmente bem narrada por Scott. Na verdade, ele e Russell Crowe parecem ter decidido dar um tempo nas produções mamute de época, tirar férias no sul da França e lá rodar um filme descompromissado. É o que transparece em cada minuto deste Um Bom Ano, adaptação do livro do jornalista Peter Mayle, amigo do diretor. É tudo tão relaxado, com um prazer de viver impresso em cada cena, que é difícil não sair do cinema leve, contente, com vontade de largar tudo e mudar-se para a Provença imediatamente. Ainda assim, Scott não descuida dos aspectos visuais que o consagraram, tornando cada cena uma pintura em movimento, com alusões a Cézanne, por exemplo, que tão bem retratou aquele local de singular luminosidade e encantos inebriantes.
O Pecado de Cluny Brown (Cluny Brown, EUA, 1946)

Mais do que uma ilusão de ótica, o cinema é a arte da aparência, é o que está impresso na película e projetado na tela. O cineasta pensa por meio das imagens. Por isso, é espantoso o quanto o berlinense Ernest Lubitsch consegue revelar, por trás das aparências, as intenções dissimuladas de cada personagem de seus filmes. E, mais incrível, em plena Hollywood dos anos 40 do Código Hayes, essas intenções têm muito a ver com sexo, aludidas por meio de um humor malicioso, deliciosas ironias, subentendidos, mal-entendidos e insinuações o tempo todo. Tudo, claro, feito com muita elegância, leveza e sofisticação. É o que ficou conhecido como The Lubitsch Touch, que influenciaria, entre outros mestres, Billy Wilder, co-roteirista de A Oitava Esposa do Barba-Azul, trabalho que Lubitsch dirigira em 1938 e que trazia Gary Cooper e Claudette Colbert em atrevidas discussões sobre pijamas.

Penúltimo trabalho de Lubitsch, Cluny Brown pode não ser hoje tão conhecido como outros de seus filmes rodados em Hollywood, especialmente as obras-primas Ninotchka (1939), A Loja da Esquina (1940), Ser ou Não Ser (1942) ou O Diabo Disse Não (1943), mas é tão pleno do toque Lubitsch quanto. Nele, vemos uma jovem Jennifer Jones (então mulher do magnata do cinema David O. Selznick, que a “emprestou” sob acordo para a Fox), interpretando a espevitada personagem-título, sobrinha de um encanador de Londres. Ela mesma, quando vê uma pia entupida, não resiste e, cheia de vontade, vai logo arregaçando as mangas e martelando no cano (“bang the pipes”, expressão de sentido dúbio) até desobstruí-lo. Assim, numa tarde de domingo, em que de acordo com os letreiros iniciais “nada de muito importante acontecia na Londres de junho de 1938, a não ser a festa do Sr. Hilary Ames (Reginald Gardiner), mas que só era excitante para o Sr. Hilary Ames”, Cluny Brown inadvertidamente substitui o tio para lidar com um entupimento. Lá conhece um refugiado tcheco, o professor Adam Belinski (Charles Boyer e suas sobrancelhas, ótimos). Essa atitude independente de Cluny com canos e encanamentos aborrece o tio, que a manda para o campo para trabalhar como criada na mansão dos Carmel. Após uma série de embaraços, em que chega a atropelar a hierarquia dos costumes domésticos britânicos, reencontra o professor, agora como hóspede da casa. Entre um jantar e outro, selam um pacto de amizade. Numa das conversas, Cluny conta ao professor que está sendo cortejada por Wilson (Richard Haydn, impagável), o farmacêutico local. Mas a maneira de cortejar de Wilson é bem inglesa, toda pudica e com a presença da mãe (Una O´Connor), que fala emitindo grunhidos que só o filho entende, numa das cenas mais engraçadas do filme. Cluny, porém, acha tudo fascinante, mas sua excitação maior em reparar encanamentos arruína o possível casamento com Wilson, levando o filme a uma reviravolta no destino de todos os personagens.

Rígida diferença de classes sempre foi um mote essencial para autores europeus compor sátiras mordazes aos costumes de reinados e cortes, especialmente na Inglaterra, onde essa relação hierárquica subsiste até hoje. E é na Inglaterra que Lubitsch faz desse filme um prato cheio para alfinetar o comportamento da classe aristocrática. Mas não poupa também os estamentos menos nobres, mas igualmente cheios de excentricidades e esnobismo, como os criados da mansão, que fazem questão de jamais falar diretamente com os patrões. Ou os tipos provincianos, como o pomposo Wilson, orgulhoso de seu único quadro na sala (“pintado à mão”) e de, sabendo apenas duas músicas, martelar melodias no órgão como se fosse o mais alto representante a serviço do Império Britânico.

Auxiliado por um roteiro afiado de Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt, baseado no romance Margery Sharp, Lubitsch tempera com habitual espírito cômico e malícia momentos-chave do filme, como a cena final em Nova Iorque, ou quando Belinski cita Shakespeare, ou mesmo uma conversa noturna de Belinski com a socialite sacaninha Betty Cream (Helen Walker), também hóspede da mansão. Aliás, muitas das falas são dignas de antologia, como “quando as classes baixas passarem a jogar dinheiro fora, é melhor os ricos tomarem cuidado” ou “usei terno em vez de paletó uma vez num jantar em Nápoles. Eu não queria chocar os nativos”. Oscar Wilde ficaria todo orgulhoso. Lubitsch é um dos prazeres da vida.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Adrenalina (Crank, EUA, 2006)


Muito fácil falar que este filme dos estreantes Mark Neveldine e Brian Taylor não passa de um videoclipão, com um fiapo de história, destinado a adolescentes descerebrados, fãs de videogame. Mesmo que seja, é uma fita de ação das mais agradáveis e divertidas, e que não tem receio de se assumir como tal em seus enxutos noventa minutos de duração. Parte de seu charme vem do protagonista, Jason Statham, cria de Guy Ritchie e mais do que talhado para quebrar costelas e chutar traseiros em filmes de macho. Uma espécie de Bruce Willis debochado, brucutu e bem mais cool.

Aqui interpreta Chev Chelios, um matador de aluguel que é envenenado pelo líder de uma gangue rival. Por causa disso, seu coração pode parar a qualquer momento, a não ser que mantenha altos os níveis de adrenalina no sangue. Assim, parte para uma jornada tresloucada por Los Angeles à procura do antídoto, e não se importa em distribuir todo tipo de “boutade” pelo caminho, incluindo derrubar velhinhos no hospital, roubar litros de energético na loja e até transar loucamente em local público diante do olhar assanhado de centenas de chinesinhas, livrando-se também da cola de ex-comparsas, seja de moto, de carro ou até voando, literalmente.

Os diretores não negam a influência de Corra, Lola, Corra ou dos filmes de Guy Ritchie pré-Madona na estética e no andamento da narrativa, com montagem que abusa de cortes rápidos, texto sobre a imagem, divisão de tela, imagens borradas, saturadas, câmera lenta alternada à câmera acelerada e todo tipo de intervenção permitida na pós-produção. Ainda assim, isso ajuda a manter o ritmo constante e de acordo com a adrenalina que a história (?) pede, sem nunca esquecer do humor surgido em muitas das cenas violentas e estapafúrdias. Está mais do que bom para um gênero em que as fitas baratas de ação têm se mostrado cada vez mais genéricas e nem são mais lançadas nos cinemas com tanta freqüência.
Claude Jade (1948-2006)


A eterna Christine Darbon, namorada/esposa/ex-esposa de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) nos filmes Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e Amor em Fuga (1978), de François Truffaut. Na foto, ao lado de Alfred Hitchcock, com quem trabalhou em Topázio (1969).

domingo, dezembro 03, 2006

A Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, EUA, 2006)

A Pequena Miss Sunshine segue por uma estrada segura, pavimentada de situações conhecidas de outros road movies, mas sem as boas intenções ou afetações que costumam caracterizar os personagens de muitos dos filmes americanos independentes. Ninguém aqui é visto como coitadinho por estar à margem do glamour da sociedade ou (mais uma) vítima do sistema capitalista opressor, nesse mundo supostamente injusto em que a competição se infiltra desde cedo, transformando aqui meninas em mini-mulheres de concursos de Miss. Além disso, a fotografia dispensa o chacoalhar da câmera de mão e não é saturada ou descolorada, nem a montagem quer dar o seu ar de pós-modernidade, picotando e borrando tudo como nos videoclipes, mesmo porque o roteiro de Michael Arndt é assentado em convenções e em personagens sólidos. E daí tira toda a sua graça.

Na trama, uma família excêntrica como todas as outras e tipicamente suburbana, formada pelo pai, especialista em dar palestras de motivação (Greg Kinnear), mas aqui um tanto digamos assim “desmotivado”, a mãe alegre, mas um tanto sobrecarregada (Toni Colette), o avô viciado em heroína, palavrões e pornografia (Alan Arkin), o irmão mais velho, um adolescente que decide não falar por um ano até ser piloto de avião (Paul Dano) e o tio homossexual e suicida que é também o segundo maior estudioso de Proust nos EUA (Steve Carell), se enfia numa Kombi amarela para levar a caçula Olive (a novata Abigail Breslin) para o concurso de Miss Sunshine na Califórnia. Detalhe, a Kombi só pega no tranco.

Assim, partem para mais uma viagem cruzando o deserto americano já vista em outros filmes e com as cenas típicas, como a do policial que os pára no caminho, as paradas no posto de gasolina ou no motel, uma morte inesperada, uma outra revelação inesperada, a tal lição em torno da união familiar, etc. Mas tudo é tão bem levado pelos diretores estreantes Jonathan Dayton e Valerie Faris que rende boas risadas. Gargalhadas até. O tempo todo. E são ajudados pelo excelente elenco, com destaque para Steve Carrell, tão engraçado em Todo Poderoso, O Virgem de Quarenta Anos e na série The Office e aqui contido, melancólico, mas que também tem seus momentos de brilho cômico, sobretudo nos diálogos com Alan Arkin, um assumido blasfemo.

Apelando para hilárias contravenções, esses underdogs disfuncionais cortam a estrada com as próprias forças, sem choramingo e sem medo de fracassar. Por isso, não deixa de ser emblemática a cena em que, ignorando as contrariedades e até uma buzina defeituosa, empurram todos a Kombi para que ela pegue no tranco, além de muito engraçada. E também o final, em que literalmente dão de ombros para essa idéia de perfeição que obsessivamente os levou até ali, assumindo de vez o lado suburbano, sim, cafona, sim, mas não, nunca destituído de humanidade.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

A Fonte da Vida (The Fountain, EUA, 2006)


Muitos torceram o nariz, alguns gostaram, outros simplesmente cochilaram. A Fonte de Vida tem se configurado como um dos filmes mais polêmicos do momento, especialmente nos minutos finais, propositalmente kitsch, com ecos de 2001 - Uma Odisséia no Espaço. Mas antes de ser um filme de ficção científica à maneira da odisséia de Kubrick, é, sobretudo, um melodrama sem-vergonha sobre a aceitação da morte, que concentra muito de seus melhores momentos no relacionamento amoroso entre Isabel (Rachel Weisz) e o cientista Tommy Creo (Hugh Jackman). Ela está morrendo de câncer, ele busca obsessivamente curá-la, testando fórmula extraída de uma misteriosa espécie de árvore nativa da América Central, que seria a mitológica árvore da vida procurada pelos espanhóis em tempos coloniais e cuja seiva traria nada menos que a imortalidade. Essa busca se estende por séculos, quando ele, já imortal e encerrado numa bolha espacial em companhia dessa mesma árvore, atinge os confins do universo e tem uma revelação que o conduz de volta ao tempo presente, quando descobre que aquilo tudo que buscava se encerrava nele mesmo.

The Fountain, em alusão ao ciclo de vida e morte, é narrado de forma cíclica, não linear, misturando três épocas distintas que se tocam, com idas e vindas entre elas, e que são pontuadas na narrativa por elegantes fusões e passagens de cena, aproximando presente, passado e futuro. Daí também a profusão de formas circulares que permeiam visualmente a estória, do anel entregue ao Conquistador pela Rainha Isabel da Espanha Inquisitorial, para onde o filme recua certa feita, aos círculos tatuados no braço de Tommy no futuro, num quebra-cabeça onde felizmente todas as peças não fazem questão de se encaixar plenamente.

A seqüência final, passada no futuro e alvo maior das críticas pelo new age brega, mas corajoso, leva Hugh Jackman ao transe como um simulacro de Buda para melhor demolir as convicções gestadas ao longo dos séculos em sua mente, sejam elas místicas ou científicas. Pela forma kitsch do Buda e de todo o resto, assume-se que não há sagrado ou misticismo; há apenas crenças retroalimentadas pelo auto-engano, construções imaginárias, que fazem o tal homem, ao buscar o fim do curso natural das coisas, se curvar a falsas convicções, consumindo-se por elas. Por isso, os três tempos narrativos podem ser na verdade um só, um delírio situado na mente do protagonista. O momento final não é tão transcendente quanto se esperava, talvez por terminar um pouco cedo, e o filme falha nesse ponto. Ainda assim, pode não ser o filme da vida de Darren Aronofsky, mas está bem longe de ser a bomba do ano. Ou isso tudo é um auto-engano da minha parte?
Bravura guerreira, covardia amorosa

"(...) his pulse was throbbing and his cheeks flushed: the great game of war was going to be played, and he one of the players. What a fierce excitement of doubt, hope, and pleasure! What tremendous hazards of loss or gain! What were all the games of chance he had ever played compared to this one? Into all contests requiring athletic skill and courage, the young man, from his boyhood upwards, had flung himself with all his might. The champion of his school and his regiment, the bravos of his companions had followed him everywhere; from the boys’ cricket-match to the garrison-races, he had won a hundred of triumphs; and wherever he went women and men had admired and envied him. What qualities are there for which a man gets so speedy a return of applause, as those of bodily superiority, activity, and valour? Time out of mind strength and courage have been the theme of bards and romances; and from the story of Troy down to today, poetry has always chosen a soldier for a hero. I wonder is it because men are cowards in heart that they admire bravery so much, and place military valour so far beyond every other quality for reward and worship?"

William Makepeace Thackeray (Vanity Fair, Chap. XXX, Penguin Classics)