O Pecado de Cluny Brown (Cluny Brown, EUA, 1946)
Mais do que uma ilusão de ótica, o cinema é a arte da aparência, é o que está impresso na película e projetado na tela. O cineasta pensa por meio das imagens. Por isso, é espantoso o quanto o berlinense Ernest Lubitsch consegue revelar, por trás das aparências, as intenções dissimuladas de cada personagem de seus filmes. E, mais incrível, em plena Hollywood dos anos 40 do Código Hayes, essas intenções têm muito a ver com sexo, aludidas por meio de um humor malicioso, deliciosas ironias, subentendidos, mal-entendidos e insinuações o tempo todo. Tudo, claro, feito com muita elegância, leveza e sofisticação. É o que ficou conhecido como The Lubitsch Touch, que influenciaria, entre outros mestres, Billy Wilder, co-roteirista de A Oitava Esposa do Barba-Azul, trabalho que Lubitsch dirigira em 1938 e que trazia Gary Cooper e Claudette Colbert em atrevidas discussões sobre pijamas.
Penúltimo trabalho de Lubitsch, Cluny Brown pode não ser hoje tão conhecido como outros de seus filmes rodados em Hollywood, especialmente as obras-primas Ninotchka (1939), A Loja da Esquina (1940), Ser ou Não Ser (1942) ou O Diabo Disse Não (1943), mas é tão pleno do toque Lubitsch quanto. Nele, vemos uma jovem Jennifer Jones (então mulher do magnata do cinema David O. Selznick, que a “emprestou” sob acordo para a Fox), interpretando a espevitada personagem-título, sobrinha de um encanador de Londres. Ela mesma, quando vê uma pia entupida, não resiste e, cheia de vontade, vai logo arregaçando as mangas e martelando no cano (“bang the pipes”, expressão de sentido dúbio) até desobstruí-lo. Assim, numa tarde de domingo, em que de acordo com os letreiros iniciais “nada de muito importante acontecia na Londres de junho de 1938, a não ser a festa do Sr. Hilary Ames (Reginald Gardiner), mas que só era excitante para o Sr. Hilary Ames”, Cluny Brown inadvertidamente substitui o tio para lidar com um entupimento. Lá conhece um refugiado tcheco, o professor Adam Belinski (Charles Boyer e suas sobrancelhas, ótimos). Essa atitude independente de Cluny com canos e encanamentos aborrece o tio, que a manda para o campo para trabalhar como criada na mansão dos Carmel. Após uma série de embaraços, em que chega a atropelar a hierarquia dos costumes domésticos britânicos, reencontra o professor, agora como hóspede da casa. Entre um jantar e outro, selam um pacto de amizade. Numa das conversas, Cluny conta ao professor que está sendo cortejada por Wilson (Richard Haydn, impagável), o farmacêutico local. Mas a maneira de cortejar de Wilson é bem inglesa, toda pudica e com a presença da mãe (Una O´Connor), que fala emitindo grunhidos que só o filho entende, numa das cenas mais engraçadas do filme. Cluny, porém, acha tudo fascinante, mas sua excitação maior em reparar encanamentos arruína o possível casamento com Wilson, levando o filme a uma reviravolta no destino de todos os personagens.
Rígida diferença de classes sempre foi um mote essencial para autores europeus compor sátiras mordazes aos costumes de reinados e cortes, especialmente na Inglaterra, onde essa relação hierárquica subsiste até hoje. E é na Inglaterra que Lubitsch faz desse filme um prato cheio para alfinetar o comportamento da classe aristocrática. Mas não poupa também os estamentos menos nobres, mas igualmente cheios de excentricidades e esnobismo, como os criados da mansão, que fazem questão de jamais falar diretamente com os patrões. Ou os tipos provincianos, como o pomposo Wilson, orgulhoso de seu único quadro na sala (“pintado à mão”) e de, sabendo apenas duas músicas, martelar melodias no órgão como se fosse o mais alto representante a serviço do Império Britânico.
Auxiliado por um roteiro afiado de Samuel Hoffenstein e Elizabeth Reinhardt, baseado no romance Margery Sharp, Lubitsch tempera com habitual espírito cômico e malícia momentos-chave do filme, como a cena final em Nova Iorque, ou quando Belinski cita Shakespeare, ou mesmo uma conversa noturna de Belinski com a socialite sacaninha Betty Cream (Helen Walker), também hóspede da mansão. Aliás, muitas das falas são dignas de antologia, como “quando as classes baixas passarem a jogar dinheiro fora, é melhor os ricos tomarem cuidado” ou “usei terno em vez de paletó uma vez num jantar em Nápoles. Eu não queria chocar os nativos”. Oscar Wilde ficaria todo orgulhoso. Lubitsch é um dos prazeres da vida.
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