segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Sangue Negro

(There Will Be Blood, EUA, 2007)



"GOD IS A SUPERSTITION!"

Em algum lugar do semi-árido meio oeste americano, haverá petróleo, haverá conflitos e, conforme o título original, haverá sangue. É o que descobrirá o então modesto minerador Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis). Em 1898, numa magnífica seqüência sem qualquer diálogo, cavoucando sozinho uma mina de prata, descobre nela petróleo. Muito petróleo. Não sem antes quebrar a perna e ter que penosamente se erguer sozinho até a superfície. Emerge das sombras e torna-se então um próspero prospector, perfurando e montando torres de petróleo em várias propriedades que arrenda de fazendeiros pelos EUA. Ao lado de seu filho adotivo, H.W. Plainview, que “usa” nas mesas de negociação para posar de homem de família, conduzindo um negócio que diz ser familiar e utilizando a conhecida retórica persuasiva de um vendedor, indicado por um morador, Paul Sunday (Paul Dano), chega à pequena e empobrecida localidade de Little Boston. Em sua ida ao vilarejo, em 1908, numa panorâmica emblemática, síntese do que virá, a câmera afasta-se dos trilhos da ferrovia para mostrar Daniel se dirigindo ao local num pequeno carro, na companhia apenas do filho. Interessa-lhe agora o petróleo, que move o carro, que transporta apenas duas pessoas, e seus interesses, contrapondo-se ao interesse coletivo representado pela ferrovia e pelo trem, que transporta muito mais gente. Seja pelas torres de madeira que ergue, seja pelas lagoas de ouro negro que faz surgir no meio do deserto, seja pelos oleodutos subterrâneos que cava em direção ao mar, de alguma forma sua presença individualista se impõe na comunidade e na paisagem inóspita de Little Boston, onde inevitavelmente entra em conflito com o pastor da congregação local e irmão gêmeo de Paul, Eli Sunday (também Paul Dano), da Igreja da Terceira Revelação. Um rival messiânico, ambicioso, em palavra, à altura da retórica de Plainview, e que se considera ungido por Deus e que quer trazê-lo para a igreja, para, sobretudo, receber uma generosa doação prometida por Plainview desde que este se instalou na área. Também insiste em benzer os poços dele, interferindo dia a dia nos negócios. Daniel, porém, criatura de natureza subterrânea, como um bicho dostoiévskiano, odeia todo mundo, especialmente Eli. E esse seu ódio, até então represado por trás de uma pretensa moral de generosidade, explode como o gás que, em certo momento, jorra sem controle do poço e atinge seu filho, deixando-o surdo. Também odeia os magnatas das grandes corporações petrolíferas que querem comprar por milionárias quantias as propriedades onde instalou praticamente sozinho as suas torres e montou o aparato de perfuração e as instalações, fazendo todo o trabalho sujo, sujando ele mesmo as mãos de graxa e até de sangue, quando via algum trabalhador seu morrer ao ser atingido por uma perfuratriz. E prefere ele mesmo cuidar da construção do oleoduto até o mar a ter que pagar o frete para a companhia ferroviária transportar o petróleo, mesmo que, para isso, tenha que se juntar de vez à congregação. Em certo momento, sem conseguir mais se comunicar com ele, bruscamente manda o filho embora e descobre ter sido enganado por um suposto irmão seu. Mais e mais só, constrói e solidifica o seu império subterrâneo, não sem alguns assassinatos cometidos de próprio punho, e nele se refugia e se afasta do mundo, e até de seu filho, agora crescido e casado com a irmã de Eli. Na sua mansão milionária e vazia, faz valer a profecia do título, no desfecho assombroso (“a teoria do milkshake”). Ao cortar laços com a humanidade, Daniel perde também o pouco que restava dela em si, e tomba como a torre que arde em chamas em outro momento espetacular do filme.

Este impressionante e muito ambicioso (seus detratores preferirão dizer “pretensioso”) épico de Paul Thomas Anderson (Boogie Nights, Magnólia), da estirpe de Cidadão Kane (1941), pela utilização da profundidade de campo ao narrar a história de um magnata que conquista tudo, mas que perde o que lhe é essencial, e Giant – Assim Caminha a Humanidade (1956), pelo petróleo, pelas imagens do ouro negro jorrando e de grandes tomadas panorâmicas do deserto, e que se estende por três décadas, levado pela extraordinária trilha sonora de Jonny Greenwood, que utiliza em seus acordes desde os barulhos da perfuração até excertos do Concerto para Violino e Orquestra de Johannes Brahms, ganha ainda mais gravidade pela interpretação magnífica, absoluta, única de Daniel Day-Lewis, que, como o maior ator do mundo que é atualmente, domina a tela, conferindo espessura a um magnata individualista radical, tal como o Charles Foster Kane de Orson Welles. Porém, seu Plainview é um visionário sombrio, desprezível, irascível e muito mais paranóico, que prefere erguer todo um mundo a seu redor e deixá-lo funcionar sozinho, mecanicamente às custas do maquinário que monta e que pode esmagá-lo a qualquer momento, que dorme no chão duro e que, pouco a pouco, coloca no seu rosto, sem nunca cair na caricatura, uma máscara de ódio contra o mundo que o deforma de tal maneira e da qual não mais consegue se livrar. É só reparar na cena do batismo na congregação, onde grita reluntatemente que é "um pecador" e que "abandonou o filho". E, ao contrário de Giant, onde o petróleo jorrava com gozo, o óleo brotando da terra aqui só lhe acarreta infortúnios, desde a perna quebrada no começo à surdez do filho, mesmo que lhe traga muita fortuna. Mas não importa tanto o dinheiro para Plainview. Importa tê-lo apenas para comprar a sua necessária solidão, já que não crê em salvação, em redenção, em nada ou ninguém. E assim caminha a sua trágica desumanidade, contra tudo e contra todos, inclusive contra seu pobre filho.

4 comentários:

mvc disse...

Grande crítica. Abraços, M.

Lorde David disse...

É ficou comprida, hehehe. Mas obrigado pela visita, M. Um abraço.

André Renato disse...

Olá! Reproduzo o comentário que estou divulgando por aí sobre "Sangue Negro": "Sangue Negro" é muito promissor, tem muitas qualidades positivas, mas acho que não é tão clássico assim quanto "O Tesouro de Sierra Madre" ou "Cidadão Kane"... Não que o filme seja ruim, mas é que pra chegar em níveis tão altos é preciso ser mais do que perfeito, coisa que eu não senti em Sangue Negro. Ele é só quase perfeito... Será que sou só eu que não acho esse filme uma obra-prima inquestionável? Já estou ficando preocupado... hehehe O filme é de um cineasta muito competente, consciente e aplicado, mas isso ainda não basta para se chegar lá... Abraços!

Lorde David disse...

Ele segue por um caminho mais tortuoso e áspero em relação a esses dois inigualáveis clássicos sobre a ambição, mas ainda assim me impressionou, e não só pela forte interpretação de Day-Lewis.