terça-feira, fevereiro 26, 2008

Senhores do Crime

(Eastern Promises, Reino Unido/Canadá/EUA, 2007)



Em vez de falarmos da vida alheia ou sobre Vestida para Casar, mais um tolo representante de um dos mais perversos gêneros cinematográficos em voga atualmente, a comedinha romântica fofa (afinal, embora não comentem, nada mais assustador para muitos homens que uma mulher vestida de noiva, especialmente se um desses homens for o noivo...), retomemos as perversões corpóreas cada vez mais concretas de David Cronenberg (Marcas da Violência, 2005), neste seu formidável Eastern Promises. Apesar de diluídas num formato mais convencional, na aparência um drama policial dos mais eficientes e enxutos sobre mafiosos russos em Londres, envolvendo contrabando de drogas, mercadorias e, principalmente, tráfico de adolescentes do Leste Europeu, suas obsessões com o corpo permanecem desde a primeira e perturbadora cena, em que uma garganta é lacerada profundamente por uma navalha. Afinal, a superfície epidérmica rasgada, que dá vazão ao jorro sanguinolento sem meios tons é o que importa desde sempre no mundo distópico de Cronenberg, em que tipos aparentemente ameaçadores, como o motorista Nikolai (Viggo Mortensen), tatuam seu histórico de violência sobre a própria pele. E mais: a pele marcada, o corpo jogado num rio, o DNA de um recém-nascido, todos “contam” histórias, assim como a jovem imigrante que entra sangrando numa farmácia, às vésperas do Natal. Um rasgo na garganta por onde se morre, uma abertura por onde se nasce. Entre a morte e a vida, muito sangue. A adolescente agonizante, de apenas 14 anos, está grávida e morre ao dar a luz no hospital onde trabalha a parteira Anna (Naomi Watts). O bebê sobrevive por pouco, e a jovem, sem qualquer identidade, deixa um diário em russo. Anna, querendo localizar um nome ou pista que a leve a algum parente da garota, a quem possa entregar a desamparada criança, mesmo filha de russos, é incapaz de decifrar a escrita em cirílico da menina. No entanto, dentro do diário encontra um cartão que a leva ao restaurante russo de Semyon (Armin Mueller-Stahl), um velho simpático que se dispõe a traduzir o conteúdo o diário, mesmo alertada pelo tio, um ex-funcionário da KGB (o veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski) sobre os perigos de se mexer nas coisas de um morto. Semyon é simpático só na aparência, pois trata-se de um chefão local da Vory v Zakone ("ladrões dentro da lei"), a sinistra máfia russa. Com sua fala suave, modula ameaças veladas, enquanto prepara um típico borscht. Entre eles, seu violento filho Kirill (Vincent Cassel) e o motorista da família e responsável por limpar todo o trabalho sujo do bando, Nikolai, um tipo bastante reservado, embora ambíguo, e eficiente naquilo que faz e, por isso, prestes a ascender dentro da hierarquia rígida da organização. Ou seja, Anna mete-se, sem se dar conta a princípio, numa enrascada barra-pesada, pondo em risco a sua vida, a de sua família e a do bebê.

Para falar do Mal que se infiltra entre os homens, Cronenberg não vê mais a necessidade de recorrer monstros gosmentos, patologias sexuais, mutantes ou indivíduos deformados, como em A Mosca, Gêmeos, Mórbida Semelhança ou Mistérios e Paixões. Ele não mudou, porém. O mundo é que ficou mais cruel, mais ameaçador em sua indiferente opacidade, tal qual a dos olhos inquietantes de Semyon ou das sombrias ruas de uma Londres bem distante de seus badalados pontos turísticos, um lugar onde nunca faz sol, nas palavras melancólicas de Semyon. E, afirma Cronenberg por meio de límpidas imagens, sobreviver a este mundo sufocante de ocultas ameaças é que se torna o grande desafio tanto para o frágil bebê, que vem ao mundo coberto apenas de placenta, mal conseguindo respirar, quanto para o forte Nikolai, que certa feita terá que se defender deste mesmo mundo e de seus seres insanamente violentos, de suas agressões, completamente nu e desamparado, como na já emblemática e bastante comentada cena da luta na sauna, um embate puramente físico contra dois sangüinários agressores chechenos, ponto alto deste belo filme, que, apesar do final esperançoso, é bastante incômodo, amargo e defendido com garra visceral pelo ótimo elenco.

4 comentários:

Alex Gonçalves disse...

“Senhores do Crime” é mesmo um filme belo, ainda que com toda a sordidez e bizarrice habitual nos filmes de Cronenberg. O que gosto desde filme em especial na filmografia do cineasta, que a pouco passei a conhecer com mais profundidade numa pequena maratona de seus filmes, é que ele não abandona alguns elementos sempre incrementados nas fitas anteriores que levam a sua própria assinatura, mas os usa de uma forma mais envolvente. Até mesmo quando nasce uma atração passageira entre os personagens de Nikolai e Anna e o filme parece despencar acabamos nos indentificando com aqueles personagens e com aquela situação.

Lorde David disse...

De fato, um filme coerente com a obra de Cronenberg e hipnotizante, com personagens mais ambíguos e complexos em relação a muitos filmes de máfia tradicionais e um desfecho pra lá de inesperado, pois o personagem de Cassel é o mais imprevisível de todos, para o bem ou para o mal. Um abraço.

André Renato disse...

Pois eu curti justamente o final esperançoso... Parece-me que a maior parte do cinema "inteligente" de hoje em dia é dominado pelo pessimismo, pelo niilismo, etc.

Lorde David disse...

Para a Naomi e para o bebê, de fato há esperança. Já para Viggo, tudo é uma incógnita. E eu gosto de finais pessimistas. Sou assim também, hehehe. Abraços.