sexta-feira, novembro 30, 2007

O Reino

(The Kingdom, EUA, 2007)



Nos primeiros minutos, uma sintética, dinâmica e muito didática animação detalha as relações de interdependência entre os EUA e a Arábia Saudita desde os anos 30, com a descoberta de petróleo no país árabe e sua subseqüente exploração por companhias americanas, que criaram no país núcleos residenciais à parte da sociedade saudita, verdadeiros subúrbios tipicamente yankees, com a finalidade de abrigar os trabalhadores das empresas americanas e seus familiares, até os atentados de 11 de setembro, perpetrados por fundamentalistas, sauditas em sua maioria como o seu mentor, Osama Bin Laden. Depois, nos dias atuais, num desses núcleos na capital Riad, um atentado suicida deixa mais de 100 mortos e duas centenas de feridos. Entre as vítimas fatais, um agente do FBI, Francis Manner (Kyle Chandler), cuja morte deixa o Bureau e, principalmente, o seu amigo, o também agente Ronald Fleury (Jammie Foxx), profundamente abalados. Apesar de impedido pela burocracia, Fleury arruma um jeito de se deslocar para o reino saudita com uma equipe que inclui a médica legista Janet Mayes (Jennifer Garner), esposa do agente assassinado, e os agentes especiais Grant Sykes (Chris Cooper) e Adam Leavitt (Jason Bateman, muito mal-aproveitado). No entanto, o trabalho dos americanos é dificultado ao máximo pela polícia, pelo pouco tempo de que dispõem para permanecer na cena do crime e pelos costumes locais. Apesar do realismo dessas seqüências e da ambientação precisa, tudo é pretexto para o movimentado terceiro ato, movido a uma saraivada de tiros e com as explosões de sempre, em que os agentes agora viram o alvo preferencial dos terroristas, deixando de lado o subtexto que se insinuava crítico à intervenção americana do começo, partindo finalmente para as cenas de ação bruta e eficiente, onde o diretor e ator Peter Berg imita descaradamente muito do estilo dos filmes de Jason Bourne e do produtor Michael Mann. O problema é que aí a valentia do mala do Jamie Foxx prevalece mais do que o necessário. Há ainda, na coda, um sussurrado discurso moral que tenta restabelecer criticamente a igualdade entre os atos dos terroristas e os dos agentes americanos e a inutilidade de atitudes mais ponderadas, mero pretexto para retaliações manu militari de ambos os lados, mas que no fundo é também mais um pretexto para deixar a porta aberta para uma (improvável) continuação.

quinta-feira, novembro 29, 2007

Viagem a Darjeeling

(The Darjeeling Limited, EUA, 2007)



Carregados de pesadíssimas malas e baús, três irmãos que não se viam desde a morte do pai se reúnem para uma viagem de trem pela Índia no expresso do título original, organizada pelo mais velho (Owen Wilson) que, a princípio não revela o verdadeiro propósito da aventura e que se põe no papel de decidir tudo por todos, da comida aos itinerários turísticos. Há muito tempo sem se falarem, cada um enfrenta a sua crise particular. Um (Adrien Brody) está para ser pai. Outro (Jason Schwartzman, sempre descalço), afastou-se da namorada (Natalie Portman), embora mantenha encontros habituais com ela, como mostra o prólogo do filme num quarto de hotel em Paris. E o suposto “líder” da expedição sofrera antes um acidente, o que o deixa cheio de dores e com o rosto inchado e enfaixado, apesar de seu otimismo constante. A viagem é o momento de reencontro, reaproximação dos três, que nunca foram amigos de fato, e, sobretudo, de redenção espiritual que só um lugar caótico e exótico como a Índia poderia proporcionar. Com uma beleza visual fora do comum, adornando cada cenário com um colorido que é particular de seus filmes, vários momentos de ternura, de comédia ou de conflito entre indivíduos que parecem muito bizarros, mas são na verdade profunda e dolorosamente humanos, além da trilha sonora sempre extraordinária, mais uma viagem propositalmente errática de Wes Anderson, difícil de embarcar a princípio em toda a irregularidae do trajeto, mas que têm seus momentos de encanto. Ainda assim, prefiro Rushmore - Três é Demais (1998), seu segundo filme e inigualável obra-prima, porque no colágio particular daquele filme havia um mundo inteiro de possibilidades a ser explorado, e o seu protagonista, Max Fisher (também Jason Schwartzman), transbordava energia e esperança em cada um dos projetos malucos a que se dedicava. Aqui, pelo contrário, nesse trem que percorre o mundo, à deriva, como no barco de A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), há apenas desencanto e frustração.

quarta-feira, novembro 28, 2007

Lady Chatterley

(Bélgica/França/Reino Unido, 2006)



A célebre narrativa literária do inglês D.H. Lawrence da paixão da nobilíssima Constance Chatterley (a adorável Marina Hands, de As Invasões Bárbaras) pelo rústico guarda-caças Parkin (Jean Louis Coulloc'h), empregado da propriedade rural do marido dela, Sir Clifford (Hippolyte Girardot), paralisado da cintura para baixo por causa de ferimentos decorrentes de sua participação como oficial na I Guerra Mundial, ganha aqui, pelas lentes de Pascale Ferran, uma leitura rigorosa, francófona, clássica, próxima em estilo ao das adaptações literárias fidedignas ao texto (e levadas pelo texto) dirigidas por Jacques Rivette. E contemplativa, sobretudo. Por chamar a atenção para a natureza, nos vários e longos passeios de Lady Chatterley pela floresta em direção à cabana de Parkin. Por contemplar com muita naturalidade, em sua longa e necessária duração, várias vezes o toque de mãos dela no corpo desnudo do empregado. E o dele no dela. Aliás, o corpo aqui é essencial. O dele, quando ela o vislumbra pela primeira vez com o torso nu banhando-se nos fundos da cabana. O dela, quando após essa visão, encantada, contempla-se depois nua diante do espelho, redescobrindo a sua sexualidade e permitindo abrir-se diante de novas possibilidades antes inimagináveis, quando enfim consumará a relação adúltera com Parkin, primeiro de maneira quase mecânica, instintiva, até o desnudamento progressivo dos dois corpos que, certa feita, correrão nus, sem pudores, libertos dos costumes e despreocupadamente pela chuva que molha a vegetação. Uma cena belíssima, vale dizer. Entre os dois predominam os silêncios e os sons da Natureza. E farão questão depois de se adornarem com flores, aproximando-se ainda mais da natureza que os circunda. Nesse momento-chave do filme, pouco importa a diferença de classes e de educação. O filme, rousseauniano, faz questão de se ater ao intercurso amoroso como forma de aproximar indivíduos de distintos backgrounds, da mesma forma que o livro de Lawrence, que aqui tem a segunda versão de seu clássico escandalosamente proibido na Inglaterra, que é conhecida como “John Thomas and Lady Jane” (em alusão aos apelidos que os amantes safadinhos dão aos órgãos genitais um do outro), adaptada para as telas.

A intimidade é progressiva, à medida que as idas de Constance (ou “Jane”?) à floresta se tornam mais e mais intensas, a paixão entre eles nasce e as complicações surgirão, claro, como o marido que demonstra sinais de recuperação, e Parkin, que volta para a esposa e sai da fazenda enquanto Constance viaja com a irmã pela Itália, até o belo desfecho, todo dialogado entre Parkin e Constance, em que Parkin, até então uma mera presença física, de poucas palavras e muita virilidade, terá o seu direito à fala alongada, num momento em que a diretora Ferran não se intimida diante do texto de Lawrence e o lança na tela quase que integralmente pela boca de Parkin, encerrando em aberto este filme formidável. Como cinema e como literatura.

terça-feira, novembro 27, 2007

Jogo de Cena

(Brasil, 2007)



Direto para a câmera, num palco de costas para uma platéia vazia, depoimentos de mulheres "reais" são “interpretados” por outras mulheres. Algumas delas atrizes mais do que conhecidas, como Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres. Outras, nem tanto. Outras, ainda, apenas mulheres comuns, pessoas nada conhecidas, como eu, como você, como todos nós. Mas eles se misturam, se repetem um a um, se sobrepõem, a ponto de nunca sabermos com certeza o que de fato é interpretação, o que de fato é emoção real, mesmo quando Marília Pêra revela para o diretor-entrevistador-“fingidor” Eduardo Coutinho (de Peões, Edifício Master, Santo Forte, Cabra Marcado Para Morrer, O Fim e o Princípio) um dos truques para simular choro em cena. E os depoimentos alternam momentos divertidos com outros mais tristes e muito verossímeis, mesmo entre as atrizes mais célebres. Assim, pouco a pouco, a linha que separa o real da representação, e até o documentário da ficção, vai se tornando inexistente, com resultados no mínimo inusitados e sempre fascinantes, pois, afinal, nós, os desconhecidos, estamos de um jeito ou de outro também representando, seja no trabalho, seja no depoimento à Polícia ou ao Juiz, seja para o médico, seja para a pretendente à namorada no primeiro encontro, fingindo ser o que não é, etc.

segunda-feira, novembro 26, 2007

O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford

(The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, EUA, 2007)



Além de covarde, o jovem Robert Ford (Casey Affleck, ótimo) é sobretudo um traidor. Como os personagens de outro James, o escritor Henry, em suas fantasias, Robert achava-se destinado à grandeza. E, um dia, sempre motivo de troça do irmão mais velho (Sam Rockwell, excelente), dos primos e dos conhecidos, considerou que a obteria se liquidasse seu ídolo de infância, o lendário fora-da-lei Jesse James (Brad Pitt, numa interpretação serena e plena de desencanto), cuja quadrilha, liderada por ele e pelo irmão Frank (Sam Shepard), se dispersa após o último grande assalto do bando a um trem, numa seqüência magnífica, com o comboio visto pelas árvores cortadas pelo farol da locomotiva, enquanto faz a curva nos trilhos. Jesse, vivendo escondido, sob falsos nomes, na obscuridade com a prole e a mulher, como um fantasma, doente, cansado e desconfiado de tudo e de todos, vai matando e perseguindo um por um dos seus antigos comparsas até chamar os irmãos Ford para um derradeiro roubo, que pode ser uma cilada para os dois ou uma chance para a tão esperada glória do caçula Robert, motivo de chacota também do próprio Jesse, mas também informante da polícia, que protagonizará o ato enunciado no título do filme e ainda tentará lucrar com a fama de ter liquidado o bandidão, reencenando o assassinato com o irmão centenas de vezes em apresentações teatrais por toda a América. Mas mitos adquirem uma grandeza ainda maior com a morte. E covardes não passam de covardes em vida. Baseado em romance de Ron Hansen, extraordinário faroeste de Andrew Dominik, de natureza contemplativa, andamento pausado em suas quase três horas de duração, cujo tom crepuscular lembra o Sam Peckinpah de Pat Garret e Billy, The Kid (1973), sem, no entanto, haver tiroteios espetaculares, e cuja força em cada quadro em movimento da estonteante fotografia esfumaçada ou embaçada e de tonalidades envelhecidas e fúnebres de Roger Deakins (Onde os Fracos Não Têm Vez, Fargo) o aproxima da beleza pictórica de Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick, e de Dias do Paraíso (de 1978 e o mais belo filme de todos os tempos!), de Terrence Malick, além de conduzido com a necessária lentidão pelo fantástico motivo musical de Nick Cave. Pontuado por uma meditativa narração em off e um constante vai-e-vem no tempo, sem dúvida e ao menos visualmente, um dos mais belos filmes deste ano excepcional. Para o cinema e para o western, está claro.

sexta-feira, novembro 23, 2007

A Noiva Perfeita

(Prete-Moi Ta Main, França, 2007)



Um solteirão convicto, ruim de tato e ótimo de faro (o sempre divertido Alain Chabat, também produtor e co-roteirista). Para os perfumes, está claro. E as suas mulheres. Suas várias mulheres. Na verdade, sua mãe e suas cinco irmãs que, com ele, formam o “G7”, grupo de reunião familiar, herança paterna do muito querido pai ultrademocrático, agora presidido indefinidamente pela matriarca e que decide todo tipo de assunto na mesa da sala de jantar e onde ele é obviamente voto vencido em qualquer discussão, das nas mais triviais às mais sérias, tanto que vive sendo pressionado por todas a se casar logo, já que passou dos quarenta anos e se encontra ainda na barra delas, que querem se livrar dele de uma vez por todas. Primogênito sofre mesmo. Então, de saco cheio, decide bolar uma farsa. “Aluga” a irmã (Charlotte Gainsbourg) de seu colega de trabalho para que ela vire a sua noiva de mentirinha até o dia do casamento, para então ser dramaticamente abandonado por ela no altar, acreditando assim que, por causa do trauma encenado, a mulherada nunca mais tocará no assunto. Mas as coisas, claro, serão mais complicadas. Não por culpa dele, já que as irmãs e a mãe passam a gostar muito, mas muito mesmo da cunhada "avulsa", perdoando-a por qualquer deslize e deixando-o cada vez mais num beco sem saída. Ela também quer adotar uma criança (e brasileira!!) e, sendo noiva ou casada, o processo seria bem menos complicado. Nada de mais, certamente previsível, mas um filme agradável de Eric Lartigan, sobretudo por causa do charme da dupla principal e das situações divertidas que cria desde o início à anos 70. Mais, por mais despretensioso que seja este filme, refletindo seriamente, parece haver uma onda no recente cinema francês, sempre em sintonia com a realidade atual, de amizades compradas ou de noivas alugadas, tal como visto em Meu Melhor Amigo (2006), do veterano Patrice Leconte, e em Por Amor ou Por Dinheiro (2005), do também veterano Bertrand Blier. Parece mesmo que o amor e a amizade descompromissada são itens mais raros hoje em dia na sociedade francesa ou em qualquer outra sociedade, e isso não deixa de ser de fato um tantinho inquietante.

P.S.: Apesar do momento um tanto difícil e de incertezas e frustrações que se somam a cada dia, só para lembrar a todos que o tem acompanhado que este esnobe blogue completa hoje o seu primeiro aniversário. Espero continuar com ele por algum tempo, embora, depois de tudo o que tem me acontecido de junho para cá, no fundo, no fundo, eu preferiria mesmo é ter permanecido para sempre na Toscana, tomando vino rosso, comendo salame de funghi porcini, disputando campeonato de lançamento de queijo ou procurando trufas brancas nas florestas escuras e nas montanhas escarpadas da Garfagnana. Mas vamos em frente. Com ou sem trufas.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Mutum

(Brasil/França, 2007)



O universo literário-atemporal-metafísico de João Guimarães Rosa é muito bem transposto para as telas por Sandra Kogut nesta sensível, mas nunca sentimental adaptação de Miguilim, a novela original que, junto com Manuelzão, compõe o livro Campo Geral. Ao manter a fidelidade à linguagem poética do texto de Rosa em muitos dos diálogos, na verdade todo um discurso trabalhado e transfigurado em outra língua, que nada tem a ver com regionalismos e exotismos e que, no entanto, nunca soa artificial ou pomposo, saindo com naturalidade da boca dos atores, em sua grande maioria "não-atores", a diretora Kogut narra com o mínimo de recursos, mas bastante apuro, dispensando inclusive o uso da trilha sonora invasiva, limitando-se aos ruídos ambientes e, mais importante, às elipses, a estória de Miguilim, aqui Thiago (Thiago da Silva Mariz), um menino do sertão mineiro às voltas com o pai bruto (João Miguel, de Cinema, Aspirinas e Urubus) cada vez mais agressivo, que, além de bater nele e na mãe, num dos surtos, manda embora a cadelinha Rebeca, a sua favorita, coisa que não compreende por quê. A oras tantas, seu irmão e muito amigo Felipe (o Dito no conto original) fica enfermo e falece, entre outros fatos ruins e igualmente incompreensíveis que presencia, que acontecem por acontecer e que compõem o duro processo de crescimento e aprendizagem de Thiago, nesta parábola de cunho universal sobre ver melhor. Sobre Thiago/Miguilim transcender este seu mundo pouco nítido e encarar o mundo dos adultos com outro olhar, conforme atesta o belo final, que, tal qual no livro, muito me comoveu em sua enganadora simplicidade.

quarta-feira, novembro 21, 2007

Crimes de Autor

(Roman de Gare, França, 2007)



Impessoal, o estilo novelão das oito do Daniel Filho francês, também conhecido como Claude Lelouch, auteur de Um Homem, Uma Mulher, Retratos da Vida, Os Miseráveis, Os Intragáveis..., até que funciona para manter a atenção desta trama policialesca, cheia de ganchos narrativos e sobreassaltos no tempo, em que uma escritora consagrada (Fanny Ardant) é acusada de matar o seu ghost-writer. Depois, recuando no tempo e no espaço, pois vamos de Paris para a Borgonha e depois Cannes, versa sobre um serial killer foragido, conhecido por entreter suas pobres vítimas com truques de mágica antes de dar cabo nelas. E de um casal que se desentende num posto de gasolina, sob os olhos muito suspeitos do feioso, mas até que simpático e pleno de ambigüidades Dominique Pilon (o ator favorito do diretor Jean-Pierre Jeunet, de Delicatessen, Amélie Poulain, Alien 4), que, além de adorar truques de mágica e de criar estórias de assassinatos com algum talento narrativo e principalmente "realismo", insistente, oferece carona à bela moça abandonada (Audrey Dana). Ele, no entanto, acaba tendo que se fingir de noivo da mulher diante da família muito jeca dela. Família desconfiada, no entanto. De uma maneira ou de outra, as várias estórias se entrelaçarão até a reviravolta rocambolesca e totalmente inverossímil do final. Mas o filme, em sua despretensão, tem seus momentos, inclusive aqueles em que Lelouch permite se homenagear, filmando a perspectiva de um carro em movimento pelas rodovias francesas tal qual naquele seu célebre curta dos anos 60, em que, sem cortes, corria raivosamente com uma Ferrari pelas ruas esvaziadas da madrugada parisiense e que depois foi remixado ao som de música do Snow Patrol.

segunda-feira, novembro 19, 2007

1408

(EUA, 2007)



Vultos, poltergeists e assombrações não passam de mitos e invencionices para o escritor Mike Enslin (John Cusack interpretando John Cusack pós-Identidade), que, separado da mulher e em crise, já convive um tempo considerável com o fantasma bem concreto da perda da sua filha. Desde então, sem inspiração para novas estórias, dedica-se a desmascarar supostos fenômenos paranormais em quartos de hotéis e pensões com fama de serem altamente amaldiçoados. Até que um dia, a fim de completar mais um capítulo para o seu livro "Dez Noites em Quartos de Hotel Mal-Assombrados", interessa-se em hospedar-se no quarto do título, no tradicional hotel nova-iorquino Dolphin e onde ninguém teria sobrevivido mais de uma hora, de acordo com o gerente do lugar (Samuel L. Jackson), que tenta, sem sucesso, dissuadi-lo da idéia. Devidamente instalado, as assombrações, claro, começam a aparecer. Ou não seriam delírios, frutos de seu enlouquecimento progressivo e paranóia? Apesar de alguns sustos esperados, mas não descarados, e da reviravolta final um tanto frustrante, um filme que tem seu charme no visual elegante e na maneira como o diretor sueco Mikael Håfström (Evil – Raízes do Mal, A Maldição do Lago, Fora de Rumo), construindo aos poucos o suspense, se esforça para desdobrar o exíguo espaço do local em mundos surrealistas que remetem diretamente ao universo da série Além da Imaginação, evitando toda aquela sangria desatada. Assim, uma adaptação mais do que razoável de um conto de Stephen King que, se não entra para a história como o clássico O Iluminado (1980), com quem compartilha alguns elementos em comum, ao menos, deixa-se ver e ainda provoca algumas inquietações bem concretas sobre a natureza sinistra dos quartos de hotéis, onde tantos se hospedam e inevitavelmente deixam lá suas marcas, como fluidos ou sangue ou mesmo a sua solidão e abandono. Ainda que não mais corpóreas, depois de lavadas, limpas, aspiradas, higienizadas, sempre estarão lá, na banheira, nos lençóis, no carpete e, sobretudo, na cabeça do próximo hóspede...

sexta-feira, novembro 16, 2007

Os Donos da Noite

(We Own the Night, EUA, 2007)



Dois irmãos. Um, Joseph (Mark Wahlberg), é um policial honesto, orgulho do pai também policial, o capitão veterano Burt Grusinsky (Robert Duvall). Outro, Bobby (Joaquin Phoenix), a ovelha negra, é gerente de um grande clube noturno no Brooklyn, na verdade, fachada para o tráfico de cocaína e da então nova droga da moda, o “pó de anjo”, e local controlado por mafiosos russos da pesada, que estão para expandir os negócios em direção a Manhattan, no final dos anos 80. Expansão em que Bobby terá um papel de destaque. Mesmo não sendo um criminoso, sabe do tipo de crime(s) associado(s) às pessoas que freqüentam seu estabelecimento. Está mais do que entranhado no submundo, tanto que, para não se complicar com os patrões, Bobby adotou o sobrenome da mãe, Green, evitando qualquer associação com o irmão e, sobretudo, com o pai. E assim distanciou-se da família. Só a sua namorada porto-riquenha (Eva Mendes) sabe do segredo. Até que um perigoso traficante, sobrinho do dono, passa a fazer negócios dentro da boate, batendo de frente com a polícia numa investida surpresa e, sobretudo, com o irmão de Bobby, que agora dirige a divisão de repressão às drogas e que comandou a batida. Em conseqüência disso, Joseph sofre uma represália. Bobby é então obrigado a escolher um lado. Ou ajuda a polícia, e seus parentes, ou envereda de vez para o mundo do crime, o que lhe impõe um dilema, cuja decisão, qualquer que seja, vai mexer inexoravelmente com o destino dos três. Ou, mais importante, trará a possibilidade reaproximá-los.

Com diálogos precisos, ótima ambientação em tons azulados ou acinzentados, nenhuma firula narrativa ou edição de cortes histéricos ou bruscos (até Mark Wahlberg está bem mais controlado do que os tipos mais nervosinhos e estouradões que costuma interpretar), o diretor James Gray, de filmografia esparsa, mas consistente, neste sombrio drama policial, com calma e elegância, consegue impor um clima constante de tensão, que tem como ponto alto uma impressionante perseguição com tiroteio sob a chuva filmada inteiramente do ponto de vista do interior do carro de Bobby, descartando efeitos espetaculares ou mesmo uma trilha sonora convencional, utilizando apenas ruídos ambientes como a chuva torrencial caindo no pára-brisa e o barulho dos limpadores. Nem os tiros são ouvidos. Os atores, todos ótimos, parecem mesmo sussurrar, mesmo nos momentos mais intensos. Enfim, outro filmaço de Gray, que repete a mesma parceria com Phoenix e Wahlberg do anterior Caminho Sem Volta (2001), também retornando, sem nunca soar repetitivo, ao universo claustrofóbico das pequenas e fechadas comunidades mafiosas nova-iorquinas (e seus tentáculos e conseqüências na família) que tão bem retratou em Caminho e no excepcional Fuga para Odessa (1994).

quarta-feira, novembro 14, 2007

Antes Só do Que Mal Casado

(The Heartbreak Kid, EUA, 2007)



No episódio 1 da primeira temporada da série britânica Extras, Ben Stiller, fazendo o papel de si mesmo como o improvável diretor de um drama sério, seriíssimo, sobre a guerra na Bósnia, gabava-se para o pobre do Ricky Gervais, um simples figurante no set, sobre o quanto seus filmes rendiam bem nas bilheterias, atestando a sua imensa popularidade e pretensa superioridade e arrogância diante de todos os meros mortais. Ao menos desta vez, no entanto, Ricky poderia dar o troco em Stiller, já que este mais recente trabalho dos irmãos Farrelly estrelado por Stiller, quase dez anos depois de trabalharem juntos em Quem Vai Ficar com Mary? (1998), foi um tremendo fracasso nas bilheterias americanas. E não sem razão. Aqui, nesta refilmagem de Corações em Alta (1972), Stiller faz Eddie Cantrow, um sujeito quarentão que não consegue se comprometer com o sexo oposto, por inúmeras implicâncias e idiossincrasias, enquanto vê amigos e ex-namoradas se casarem. Um dia, pressionado, sobretudo pelo pai (Jerry Stiller), ele reage sem pensar duas vezes: casa-se com Lila (a bela sueca Malin Akerman), semanas depois de socorrê-la num assalto e que lhe parecia a mulher ideal, pela química que rola depois do incidente. Mas é na lua-de-mel num resort no México que ele passa a conhecê-la melhor e descobre que Lila não tem nada a ver com ele. E passa a implicar com todos os defeitos dela, exacerbados à maneira grosseira e irreverente dos irmãos Farrelly. Apesar de toda lindona e loira, Lila tem desvio de septo, o que faz escorrer pelo nariz tudo o que ingere, cantarola sem parar, não ganha nada em seu trabalho, além de ser selvagem e bruta na cama, o que não acho que seja tão mal assim, hehehe.

Um filme que começa bem, com muito do humor de banheiro e sujeitos pra lá de bizarros, lembrando os bons tempos de Débi e Lóide (1994) e Quem Vai Ficar com Mary?. No entanto, sem os mesmos tipos mais simpáticos de Ligado em Você (2003, sim, eu gosto desse filme, hehehe) ou Amor em Jogo (2005), cede a uma misoginia intolerável por parte do personagem de Ben Stiller, especialmente quando este se interessa por outra e bem mais adorável hóspede do hotel (Michelle Monaghan) e passa a desprezar ainda mais a mulher, mesmo quando ela é capaz de demonstrações de afeto. E vai perdendo o gás em situações mal-amarradas e piadas repetitivas, com muitos elementos cômicos já vistos em outros filmes dos Farrelly, como os cantores mexicanos que aparecem para o casal nos momentos mais inconvenientes (tais quais os cantores chatos de Quem Vai Ficar com Mary?) ou piadinhas/pegadinhas do tipo “I got you!” (presentes em todos os filmes dos irmãos), mas aqui sem a mesma graça ou timing, e, aos poucos, o Eddie de Stiller vai se mostrando o que é de fato: um tipo mentiroso, covarde e cafajeste, algo confirmado na cena final. É muito difícil ter simpatia por alguém assim. Lamentável.

terça-feira, novembro 13, 2007

A Via Láctea

(Brasil, 2007)



“Seguir em linha reta em direção a tudo o que amamos” é o mote deste literário e pouco cinematográfico A Via Láctea, segundo e que se quer sensorial trabalho na direção da clarinetista Lina Chamie (Tônica Dominante, 2001). No entanto, o filme segue torto, torto, com o engarrafamento paulistano e as mazelas sociais que encontra pelo caminho servindo de óbvia metáfora para o desespero existencial do protagonista Heitor (Marco Ricca), professor de literatura e literatices, que, após ter rompido com a bem mais jovem namorada por telefone (Alice Braga), decide ir ao encontro dela de carro para tentar reatar. No entanto, a longa viagem pelas entupidas avenidas de São Paulo torna tudo mais difícil e dispara nele uma série de recordações felizes ou infelizes. Além disso, o que é pior, Chamie pavimenta o caminho de Heitor com óbvias e muito pretensiosas citações literárias e musicais, como o início de A Morte e a Donzela, de Schubert, mesclada aos primeiros versos de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, mescla já feita melhor e de modo idêntico por Robert Guédiguian em Marie-Jo e Seus Dois Amores (2002). Assim como na utilização da Lacrimosa do Réquiem K626 de Mozart, obviamente evocada quando há morte e tristeza no ar, algo já visto ou ouvido inúmeras vezes em Elizabeth, Amadeus, O Dia da Caça e tantos outros filmes. Também há poemas de Carlos Drummond de Andrade, do livro Claro Enigma, Manuel Bandeira e de Mario Chamie, pai da diretora. E um final mais do que óbvio e esperado. Uma pena, porque nas cenas em que se ouve o pizzicato do movimento intermediário da Sinfonia em Ré Menor de César Franck há certa beleza, soterrada no entanto por mais uma metáfora literária pretensiosa, forçando na poesia barata que quer buscar uma transcendência universal a todo custo, como aquela da luz das estrelas que se extinguiram mais que ainda viaja pela Via Láctea, que é também a imensidão de luzes dos faróis dos carros parados à noite no engarrafamento. Oh, que poético!

segunda-feira, novembro 12, 2007

Leões e Cordeiros

(Lions for Lambs, EUA, 2007)



Um jovem senador republicano com ambições de concorrer à presidência americana (Tom Cruise, também produtor), um falcão na verdade, apresenta a uma jornalista veterana (a sempre formidável Meryl Streep), em entrevista exclusiva, sua nova estratégia para combater o terror wabbista do Talibã, desta vez mandando soldados para um ponto montanhoso e estratégico do Afeganistão, quase na fronteira com o Irã. Enquanto conversam, a nova ação de “Choque e Pavor” já está sendo implementada pelo exército americano. No entanto, subestimando o poder de fogo do inimigo, como sempre, o helicóptero que transportava o pelotão é alvejado e dois soldados (Derek Luke e Michael Peña) caem feridos nas gélidas montanhas e são encurralados pelo Talibã. Os dois eram alunos de Stephen Malley (Robert Redford), um professor universitário idealista que tenta inspirar outro dos seus alunos mais promissores (Andrew Garfield), que andava um tanto preguiçoso e ausente das aulas, a fazer algo pelo seu país por meio de debates e participação mais ativa na política. Mas não se engajando diretamente na guerra, como fizeram os outros dois soldados e que, agonizantes, aguardam o cada vez mais improvável resgate sob forte tiroteio. E a estatégia do senador vai escorrendo pelo ralo, enquanto a jornalista, um tanto cética, tenta decidir se leva ou não ao ar o conteúdo da entrevista. Basicamente, em três momentos que transcorrem paralelamente, uma grande discussão em torno das responsabilidades americanas pós-11 de setembro na mídia, na política, na própria sociedade do país, indiferente em relação ao resto do mundo, e no combate ao terror e suas conseqüências devastadoras até agora, sobretudo para a imagem da América, a “Roma em chamas”. Um boa discussão, no entanto, incisiva em vários momentos, e ótima direção de atores, apesar do tom predominantemente discursivo e demonstrativo, que redundam em imagens que reafirmam o que já foi dito no diálogo ou na cena anterior, neste que, ainda assim, é o melhor filme do convencional Robert Redford (Gente Diferente, Rebelião em Milagro, Nada é para Sempre, Quiz Show) como diretor. Definitivamente estamos de volta aos anos 70, em que o cinema, mesmo o hollywoodiano, não se furtava em falar abertamente de política estando em sintonia com o momento atual. Até a clássica United Artists, produtora do filme e bem forte naquela época, foi trazida de volta depois de amargar um tenebroso ostracismo.

sexta-feira, novembro 09, 2007

O Petróleo é nosso! O Cinema também!



Se for confirmada, com a descoberta da sua maior bacia petrolífera no litoral paulista, o Brasil vai se tornar enfim não só um dos maiores produtores de petróleo do mundo (Chupa, Chavez!), mas também de filmes. Todos, claro, pagos pela Petrobrás no Baixio das Bestas de Brasília 18% (da propina). Bollywood já era. Hollywood e o imperialismo yankee, coitados... É hora de inchar mais ainda de funcionários e burocratas aquela já bem balofa Secretaria do Audiovisual ou construir uma nova e faustosa sede superacessível a todos em Bruxelas ou Londres ou Nova Iorque. Quanto aos filmes, já imaginaram que show formidável: finalmente Cinderela Baiana vai ter aval do Ministério da Cultura para uma continuação e/ou preqüela, assim como Ó Paí Ó. Guilherme Fontes vai enfim concluir o seu polêmico Chatô. Vai ter dinheiro de sobra para mais um sensacional Acredite! Um Espírito Baixou em Mim. Acreditem! Ou para a volta/regresso/transtorno da Irma Vap. Todos os filhos do Francisco terão também a sua cinebiografia. Daniel Filho fará o seu épico sobre as patricinhas tesudas da Barra da Tijuca e de Miami regadas a caipiroska, estrelado pelo Fábio Assunção. E a Xuxa não vai mais sair das telonas, assim como o Renato Aragão, a Sandy e o Júnior (ou só a Sandy ou só o Júnior), o Padre Marcelo e a Eliana com os botos e o botox emprestados da Angélica. Ou a família Barreto. E Chorão terá o seu O Magnata transformado em cinessérie. Chorei! Podecrer! 1, 2, 3, 4... Cacá, Jabor, Odiquê! Eu não conhecia Tururu. Mais do mesmo: ditadura, ditadura, ditadura. E o Araguaya sem conspiração do silêncio. A tchurma mucho lôca da Concepção de volta para aprontar novos agitos e confusões. Plim-Plim. É a chance também de Norma Bengell lançar em DVD o seu tão injustiçado O Guarani remasterizado, widescreen, edição quíntupla Deluxe, com milhares de extras, comentários em áudio do Rubinho analisando a pele e o penteado dos índios, tudo embalado num luxuoso estojo em forma de cocar. Com tanta bufunfa, até Sganzerla ressuscitaria para rodar mais uma ficção documental sobre a visita de Orson Welles ao Brasil. É tudo verdade! Sem contar os inúmeros curtas de idéias curtas ou documentários que ninguém vai ver, mas que já estarão devidamente pagos pelos cofres do Bananão, versando sobre tocadores do boi-bumbá, farofeiros de Santos, mestres capoeiristas do ABC, surfistas desnudos da Paraíba, playbas e tesudas do Cambuí campineiro e dos Jardins, os anões da periferia de Nova Iguaçu, os sacoleiros de Foz do Iguaçu, as tribos paulistanas descoladérrimas, como os japas do rap do metrô Conceição, os maconheiros de Itapuã, os cervejeiros do Amapá, os artesãos de panelas e estatuazinhas rústicas de argila do Vale do Jequitinhonha, as bruacas e barangas de Barueri, os puxadores de escolas de samba da Vila Isabel, os garis e guris de Belford Roxo, os fogueteiros do morro do Pau da Bandeira e do Jacarezinho, os cariocas descamisados, os paulistanos acelerados, os baianos suados e sarados correndo nus pelo Pelourinho ao som do Olodum e da Ivete. A nudez dionisíaca-exu do Zé Celso, os trombadinhas da Cinelândia e da Cracolândia, as putas grávidas da Augusta e do Itatinga, os jangadeiros e boleiros e o Zeca Baleiro. As cerzideiras hermafroditas de Joaquim Egídio, os roceiros albinos do Oiapoque, os travecos telúricos dos bosques das Campinas das andorinhas e dos Jequitibás, além de mais uma leva daqueles docs urgentes sobre músicos e compositores da MPB, mostrando o vigoroso comuna Jorge Mautner de sungão vermelho praticando escalas dissonantes arrebatadoras com o seu violino (e outros instrumentos...), ou o making of do pornô da Rita Cadillac com o Alexandre Frota e a Gretchen ou ainda a Pedrinha de Aruanda num brunch bem baiano na casa de Dona Canô com seu irmão Caê, etc. Tudo isso filmado através do olhar de publicitário sensível de cineastas ricos, riquíssimos, mas com consciência social, está claro. Mas é bom que sobre algo desse arrego todo para mais um Tropa de Elite, porra! Depois ficam aí reclamando na caixa de comentários que este blogue não fala de cinema, muito menos do brasileiro, tsc, tsc...

quinta-feira, novembro 08, 2007

Valente

(The Brave One, EUA, 2007)



Excelente filme de justiceiro às antigas, aqui vivido por uma mulher, uma radialista nova-iorquina, Erica Bain (Jodie Foster), que num passeio noturno no Central Park com o namorado (Naveen Andrews, de Lost), ambos são brutalmente agredidos por arruaceiros. Latinos, claro, que gravam tudo em vídeo e ainda roubam o cachorro do casal. O namorado morre. Ela entra em coma. Quando desperta, com medo da cidade que antes lhe parecia segura e cheia de poesia em cada esquina, passa a andar armada, embora nunca tenha atirado com uma pistola antes. E passa a disparar em delinqüentes que flagra em assaltos ou que tentam molestá-la no metrô. E, pior, passa a gostar. Tanto que, como não consegue dormir à noite, anda pelos lados escuros da cidade como se procurasse motivo para atrair e, em seguida, alvejar criminosos. Um policial (Terrence Howard, de Crash e No Ritmo de Um Sonho), divorciado, um tanto desiludido com o sistema e fã do programa de crônicas poéticas que ela apresenta sobre a cidade, investiga essa súbita onda de homicídios. Sem suspeitar, fica até fica amigo dela. Uma hora, amigo até demais.

Interpretações perfeitas da dupla de protagonistas, que carregam o filme e ajudam a tornar situações improváveis verossímeis, e um final cínico, mas certeiro, num trabalho em que o diretor Neil Jordan (Traídos pelo Desejo, Um Lance de Sorte), sem meios tons, entrega o que promete em tensas seqüências noturnas e não tem medo de parecer anacrônico nesta era de falação politicamente correta ou de relativização de ações criminosas que, no entanto, nos deixa como legado sombrio a Bósnia, o Kosovo, o Iraque, Ruanda, Darfur e, horror dos horrores, a revistinha CartaCapital, enquanto discute-se o que deve ou não ser dito ou mostrado na TV ou escrito ou filmado de forma a não ofender sensibilidades alheias, essas em geral à esquerda. Como um Fritz Lang ou um Samuel Fuller, ao atiçar os baixos instintos da platéia, que, evidentemente, torce pela heroína de moral discutível, que a cada nova morte perpetrada torna-se mais e mais segura e confiante de que é capaz de aplicar por si só a condenação e a pena capital longe da polícia e dos tribunais, desafiando-os até, como na cena em que entrevista o policial sobre seu próprio crime, Jordan desanca sem medo de ser feliz essa outra mentalidade da patota ideológica também muito discutível de nossos tempos de indefinições múltiplas, de dizer tudo para nada dizer num impasse geral sobre tudo e todos. Enquanto isso, em Darfur...

quarta-feira, novembro 07, 2007

O Passado

(El Pasado, Argentina/Brasil, 2007)



O problema principal desta boa, mas parcial, adaptação do livro de Alan Pauls a cargo de Hector Babenco (que aqui faz uma ponta como um projecionista negligente), é justamente o seu protagonista, Gael García Bernal, queridinho da última Mostra de SP, onde marcou presença com três filmes. Na estória, narrada por meio de elipses, ele muda de mulher, as mulheres ao redor dele mudam, as situações mudam, mas ele continua com a mesma cara de moleque boboca na pele do tradutor e intérprete Rímini, que, após 12 anos, separa-se da mulher, Sofía, sua paixão de adolescência, conforme atestam fotografias antigas em determinado momento da narrativa. Paixão que se estendeu por tempo demais. Mas, não para ela. Logo, encontra uma substituta, uma modelo muito ciumenta. Mas, logo, logo, ela também sai da sua vida, de maneira abrupta. Arruma outra substituta, a racional Carmen, uma colega da faculdade e também tradutora. Com ela, a relação parece que vai amadurecer, pois têm um filho. Mas Sofía reaparece, como uma presença ameaçadora, dando ao filme ares de suspense, pois é visivelmente desequilibrada, e o passado, que tenta esquecer, insiste em pairar ao seu redor, levando Carmen, por causa de um incidente estúpido, a também cair fora da relação com o filho junto. E tudo outra vez de forma abrupta e mal-resolvida. Rímini entra em depressão e aprofunda a sua afasia, antes manifestada aqui e ali em lapsos de linguagem nas conferências que ajudava a traduzir. Ou seja, desaprende de vez as outras línguas que dominava, como o inglês e o francês. Também desaprende a se comunicar com o mundo, isolando-se. Até Sofía e seu passado reaparecerem, de novo, desta vez de maneira decisiva. Ou quase.

Visualmente elegante e de ritmo compassado, mas que, apesar de todas as obsessões e paixões envolvidas e revolvidas na trama como velhas e insistentes feridas, soa frio e inconsistente, dissolvendo-se nos tons neutros demais da fotografia muito composta em seus enquadramentos que se querem estilosos e que engessam o filme, limando também parte do senso de humor e das ironias que havia no livro. E também pelas limitações óbvias de Gael. A burrice de seu personagem certa feita chega a ser inacreditável e inaceitável.

Os Bravos e os Broncos da Mostra SP



1. Javier Bardem em Onde Os Fracos Não Têm Vez, dos Brothers Coen.



2. Viggo Mortensen em Senhores do Crime, de David Cronenberg.



3. Tommy Lee Jones em Onde Os Fracos Não Têm Vez.



4. Kurt "Stuntman Mike" Russell em À Prova de Morte, de Quentin Tarantino.



5. Jodie "Vigilante" Foster em Valente, de Neil Jordan.

terça-feira, novembro 06, 2007

Desejo e Reparação

(Atonement, Reino Unido/França, 2007)



Apesar da temática trágica, um grande filme para este grande, enorme, magnífico, gigantesco, glorioso dia sob o céu de York, levando para longe o inverno e as nuvens carregadas de nosso descontentamento cotidiano. Ao menos, por um dia. Espero. Baseado em romance prestigioso de Ian McEwan (que também é produtor-executivo, reforçando a fidelidade à sua obra original), finalista do Booker Prize, Nobel, etc., numa ambientação precisa, mas sem ceder aos exageros comuns a muitos dramas de época, como o apego excessivo aos detalhes, figurinos, talheres, porcelanas, etc., o diretor Joe Wright (do excelente Orgulho e Preconceito, 2005) consegue aqui o raro equilíbrio entre o rigor detalhista da produção de época e o intimismo dos melhores e mais sofisticados dramas literários de James Ivory, como Retorno a Howards End (1992) e Vestígios do Dia (1993). Com uma câmera fluente, em justos travellings, da mesma maneira que em Orgulho e Preconceito, no início, passeia elegantemente pela propriedade do casarão inglês campestre onde Briony Tallis (Saorsi Ronan), a imaginativa irmã mais nova de Cecilia (Keira Knightley), está terminando de escrever a sua mais recente peça de teatro, que encenará na aristocrática reunião familiar, com ensaios marcados e tudo com os primos e coleguinhas. O período antecede a segunda grande guerra. Ou seja, tensão no ar, especialmente a sexual. E a chegada dos familiares e amigos a casa, bem como a presença do menos abastado filho da governanta, o universitário Robbie (James McAvoy), por quem Briony sempre nutriu certa afeição, apesar de ele ser apaixonado desde a infância por Cecilia, só a acirra. Numa noite, Briony flagra Cecilia com Robbie num enlace amoroso e, depois, num incidente envolvendo suposto abuso de uma das primas, Robbie, o mais pobre, num mal-entendido, leva a culpa por conta de Briony, que, alimentada por outros mal-entendidos e por sua imaginação pra lá de fértil, devotada ao drama, acaba acusando-o injustamente, o que vai custar caro para ambos. E também para Cecilia. E, pior, muito mais difícil de ser reparado naquela sociedade inglesa de classes sociais fortemente marcadas e de desejos ocultos em choque com uma moral ainda muito repressora. Com a eclosão da guerra, Robbie, separado de Cecilia, agora enfermeira, para não ser preso, vai para o front, mas como simples soldado, sem patente. E Briony, culpada, passará o resto da vida tentando corrigir a injustiça. Primeiro, como enfermeira (agora interpretada por Romola Garai), assistindo os inúmeros feridos, depois como escritora.

A escrita jamesiana de McEwan, ora delicada, ora de texturas sombrias, ora um tanto empolada, mas sempre fluente, ganha tradução plena e enxuta graças ao excelente roteiro de Christopher Hampton (Ligações Perigosas, 1988, Carrington, 1995), em momentos como no soberbo plano-seqüência da retirada das tropas de Dunquerque do ponto de vista de Robbie e seus colegas soldados no meio de toda a devastação da guerra, evitando, no entanto, a barulheira das batalhas, concentrando-se mais em seus efeitos. Outros, como na ensolarada primeira parte, que envolve os flertes entre Cecilia e Robbie e toda a tensão sexual latente entre eles, são reencenados sob diferentes ângulos e pontos de vista, além dos furtivamente presenciados por Briony. Mas nenhuma cena, por mais simples que seja em sua enunciação, é mais devastadora que a da reviravolta final, agora a cargo de Vanessa Redgrave como a Briony madura que, ao fazer a tardia reparação, finalmente sela o destino de todos. Dela, de Vanessa, não é preciso dizer muita coisa. É brilhante, como sempre. Mas é o elenco jovem que se destaca, sobretudo McAvoy e Ronan, como a menina inteligente, precoce, que, no entanto, não consegue articular a sua frustração, que vira raiva, depois culpa, neste filme envolvente, quase silencioso, conduzido serenamente por Wright, que nunca escorrega para as facilidades do melodrama. E que muito menos é friamente calculado ou “acadêmico”, como insistirão alguns, correndo-se o risco de cometer outra injustiça com este belo trabalho, além daquela que perdura por décadas na trama.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto

(Before the Devil Knows You’re Dead, EUA, 2007)



Um assalto fracassado a uma pequena joalheria no subúrbio novaiorquino. Em seguida, em vários desdobramentos, o filme recua para mostrar em diferentes perspectivas como o que parecia um crime comum acabará, na verdade, deflagrando uma tragédia familiar, de ressonâncias bíblicas, envolvendo especialmente dois irmãos co-responsáveis pelo roubo: o inseguro e enrolado Ethan Hawke e o seguro até demais (e também enrolado) Philip Seymour Hoffman. E também o patriarca (Albert Finney, soberbo), claro. A cada flashback, o caldo engrossa. É o veterano Sidney Lumet, em direção firme, incisiva e elegante, amarrando os vários pontos sem atropelos e, sobretudo, de volta aos bons tempos de Serpico (1975) e Rede de Intrigas (1976), num ótimo filme, que ainda traz Marisa Tomei, como a esposa insatisfeita de Hoffman, mais gostosa do que nunca.

sábado, novembro 03, 2007

Esse faria até o Capitão Nascimento desistir!

Com Javier Bardem como Anton Chigurh, definitivamentes os velhotes não têm vez. Menos o "velhote" do Tommy Lee Jones. E menos ainda o "velhote" do Cormac McCarthy. Sensacional!

quinta-feira, novembro 01, 2007

Senhores do Crime

(Eastern Promises, Reino Unido/Canadá/EUA, 2007)



“Às vezes, na minha profissão, vida e morte vêm juntas”, é o que diz, em sentença emblemática, a enfermeira londrina interpretada por Naomi Watts a Nikolai (Viggo Mortensen, excelente), um motorista enigmático e guarda-costas da família de uma organização criminosa russa conhecida como Vory v Zakone e chefiada pelo patriarca Semyon (Armin Mueller-Stahl). Ao ajudar no parto de uma desconhecida adolescente russa, que morre ao dar à luz, sem intenção, descobre por meio de um diário encontrado nas coisas da menina, provas que incriminariam membros da família russa. O bebê sobrevive. Ela, também descendente de russos, após a recusa do tio, ingenuamente pede para Semyon traduzir o diário. Mete-se numa encrenca daquelas, pondo em risco a sua vida, a de sua família e a do bebê.

Aqui, David Cronenberg mostra que, ao contrário de seu trabalho anterior (mas sem contradizê-lo), o magistral Marcas da Violência (2005), o “histórico” de violência de um indivíduo como Nikolai, pertencente a essa seita do crime, cheia de códigos bem marcados, sobrevivendo num mundo à parte, numa Londres ameaçadora em cada fachada, não está oculto sob um falso nome, numa nova vida, sobre um passado violento que, mesmo enterrado, ressurge. Está lá impresso na forma de tatuagens, comuns entre os criminosos russos. Está, de cara, na superfície. Antes, o horror se ocultava diante da aparência de uma vida supostamente imaculada. Aqui, a aparência é marcada por horrores tatuados, depois por hematomas, materializados e intensificados à maneira de Cronenberg e seu "body horror", que pontua o filme, de andamento no todo plácido, embora carregado de tensão, com cenas de violência extrema, direta, sempre perturbadoras, como mutilações, perfurações, facadas, socos em que se ouvem os ossos quebrando ou esmagando e lacerações profundas na garganta. E também, graças a um roteiro coeso e enxuto, carrega como ninguém na ambigüidade dos personagens, especialmente em relação a Nikolai, a princípio um oportunista, a Seymon, a principio um velho avô simpático, e seu filho Kyrill (Vincent Cassel), a princípio, um sujeito agressivo e psicótico. Mas, só a princípio. Um filme rigoroso nos detalhes do dia-a-dia desses criminosos e apoiado por um elenco extraordinário resulta num trabalho de mestre. Simplesmente um dos melhores filmes do ano, do diretor de A Mosca (1986), Gêmeos – Mórbida Semelhança (88) e Mistérios e Paixões (91), entre outros, aqui num registro mais clássico, mas tão incômodo quanto em seus trabalhos mais gore.

Go Go Tales

(Itália/EUA, 2007)



Um Abel Ferrara num registro mais cômico, menos denso que Maria (2005), por exemplo, e cuja atmosfera lembra as produções noturnas que habilmente dirigia nos anos 80, como Cidade do Medo (1984) e O Rei de Nova Iorque (1990). Sem a violência extrema desses filmes, está claro. Aqui, devendo muito (mas muito mesmo!!!) ao John Cassavetes de A Morte de um Bookmaker Chinês (1976), conta, muito no improviso e durante uma noite, os apuros de um dono de uma casa de strip tease de Nova Iorque financeiramente quebrado (Willem Dafoe), mas que mantém o cada vez mais insustentável vício de apostar grandes quantias de dinheiro na loteria, mesmo já não recebendo muitos clientes na sua espelunca. Já não tem mais dinheiro nem para pagar as suas garotas estrangeiras, todas elas com altas pretensões artísticas e que ameaçam entrar em greve. Também se encrenca com seus sócios, entre eles o irmão oxigenado (Mathew Modine), um dos gerentes, The Baron (Bob Hoskins), e, sobretudo, com a exaltada proprietária do imóvel (Sylvia Miles), que quer expulsá-lo de lá para dar lugar a uma loja de departamentos. Aposta todas as fichas no próximo sorteio da loto para levantar o lugar. Isso se conseguir encontrar depois o bilhete supostamente premiado!

Engraçado e ao mesmo tempo melancólico, pontuado por várias cenas das garotas se despindo ou exibindo outros “talentos” em cena, como a stripper “roteirista” interpretada por Steffania Rocca, que consegue financiamento para seu roteiro cinematográfico bem no meio de uma sessão privada de lap dance, filme que se passa quase que inteiramente dentro do cabaret, um ambiente ideal para transformar as mulheres em fetiches, obsessão de Ferrara. Tem também como grande trunfo a interpretação marcante de Willem Dafoe como um tipo um tanto patético, às vezes ingênuo, mas cujo carisma e certo idealismo mantêm o lugar, o clube Paradise, funcionando acima das dificuldades financeiras, além de interligar todas as figuras insólitas que lá orbitam, desde o cozinheiro especializado em cachorros-quentes orgânicos a uma dançarina que se exibe no palco com um rottweiler (Asia Argento), conduzindo todos a um final pra lá de irônico.