(To Be or Not to Be, EUA,1942)
The “Lubitsch Touch” again and again...
Quando as coisas estão difíceis, e ainda pioram, sempre recorro a Lubitsch. No começo desta semana, por exemplo, a visão de meu olho bom, o esquerdo, embaçou. Pensei que fosse algo com as lentes de contato que uso, e que só bastasse a troca delas e tal. No retorno ao oftalmologista, porém, ele constatou um pequeno rasgo no fundo da retina. Prognóstico: uma urgente cauterização a laser, pela quarta vez na minha vida, para fechar a fissura no fundo do olho a fim de impedir um muito provável descolamento de retina. Descolamento já ocorrido no olho direito, meu olho fraco, ultramíope, e cuja visão piorou consideravelmente após uma dolorosa intervenção cirúrgica tempos atrás. E lá fui mais uma vez sentir aquelas pontadas durante os disparos do laser, como agulhas cutucando o fundo do olho, uma lente grossa impedindo o fechamento das pálpebras e as lágrimas que não paravam de escorrer, insistentes, disparo após disparo. E eu querendo fechar o olho de qualquer jeito, sair dali, me esconder, respirar, enfim. Mas só me restava agüentar aqueles tiros estroboscópicos, firme. E depois, os flashes, a tontura, a visão embaçada e a cabeça latejando, todo aquele incômodo para que, ao menos, fosse evitada nova cirurgia e a conseqüente piora da visão de meu olho bom. Por enquanto. Depois disso, só olho(s) de vidro. Enfim, com a cabeça doendo, visão um pouco melhor, ma non troppo, fui para a casa no final da tarde e, potencializado por tudo isso, senti também o peso da solidão desses anos em São Paulo, da angústia e do acúmulo de frustrações, no trabalho e na vida pessoal, de tudo que passa e acabo não aproveitando, dia após dia, etc., coisas que só costumo sentir na quinta ou na sexta e não logo no início da semana. Aí percebi que, mesmo com tudo ao redor sem definições precisas, era a hora de ver este clássico de Ernest Lubitsch, a fim de esquecer um pouco da dor e do peso dos fracassos que ainda me afligiriam ao longo da noite e do dia seguinte. E depois ainda tratei de revê-lo, quando tudo já estava mais nítido e o pesar era menor. E que maravilha! Mais uma de suas charmosas obras-primas. Uma delícia do início ao fim. Um primor nas atuações, nos diálogos entremeados de malícia e erotismo (o tal do inimitável “Lubitsch Touch”) e que começa com Hitler, um vegetariano, mas “que engole países inteiros”, conforme assinala a narração, passeando calmamente pelas ruas de Varsóvia pouco antes da guerra e assustando a população local. Na verdade, trata-se de um ator da companhia do Teatro Polonês, que ensaiava uma peça sobre o nazismo e que deixou o palco irritado com as críticas a sua performance. Está armada a farsa metalingüística. Aqui, Lubitsch, que já havia satirizado o comunismo em Ninotchka (1939), tece uma caricatura do nazismo, tendo como protagonista o casal de atores da companhia, Maria e Joseph Tura (Carole Lombard e Jack Benny). Durante o famoso monólogo de Hamlet, Maria pede a um admirador, Sobinski (Robert Stack, o Elliot Ness da série de TV “Os Intocáveis”), um jovem piloto, que se levante e vá ao camarim dela para, digamos assim, “conhecê-la”. Isso, o ato de alguém sair no meio de sua apresentação, está claro, irrita Joseph, que se considera o grande ator de teatro da Polônia. Mas a química entre os dois, piloto e atriz, é imediata, pois Maria fica admirada em saber, sobretudo, do avião que Sobinski pilota, um bombardeio que despeja “três toneladas de bombas em dois minutos”, vejam só. E Sobinski se oferece, digamos assim, para mostrá-lo a ela. E em detalhes. No entanto, a guerra explode. E Sobinski se junta à Real Força Aérea Britânica. Lá descobre um espião da Gestapo disfarçado de líder da resistência. Doido para revê-la, regressa clandestinamente a Varsóvia, numa cena de ação construída com admirável suspense. Com a ajuda de Tura e sua trupe, arma uma cilada para o impostor, com os atores fazendo-se passar por soldados alemães, e com o canastrão Joseph tendo que interpretar várias vezes figurões nazistas igualmente canastrões e esmerando-se no “Heil, Hitler” toda vez que é obrigado a improvisar. Ao mesmo tempo, compete com Rawitch (Lionel Atwill), o “Hitler” da cena inicial, para ver quem é o melhor "nazista" em cena.
Num roteiro bem mais complexo que as habituais comédias de situação e operetas que Lubitsch magistralmente dirigira até então, ao juntar drama, propaganda antiguerra e, claro, humor durante a ocupação da Polônia, da mesma forma que Chaplin fizera em O Grande Ditador (1940) e que Billy Wilder, confessso discípulo de Lubitsch, faria mais tarde com a divisão da Alemanha em Cupido é um Moleque Teimoso (1961), expõe-se os artifícios do teatro para representar a realidade e atuar sobre ela, de modo a alterar a sorte dos envolvidos e a manter a resistência local viva. E isso no decorrer da guerra, o que gerou várias críticas ao filme pelo assunto, que seria impróprio para o humor. Sobre isso, Lubitsch declararia: “Ser ou Não Ser gerou muitas controvérsias e, na minha opinião, foi injustamente... Nunca quis fazer graça à custa dos poloneses... O que satirizei na fita foram os nazistas e sua ridícula ideologia. Satirizei, também, a atitude dos atores que sempre permanecem atores, por mais perigosas que sejam as situações nas quais se vêem envolvidos”. Destaque ainda para a impagável atuação de Sig Ruhlman, ator lubitschiano por excelência, como o líder da Gestapo em Varsóvia, o coronel Ehrhardt, também conhecido como o “campo de concentração” Ehrhardt, título que o deixa todo orgulhoso. E já que o assunto deste post começou pelos olhos, vale sempre lembrar do colírio que é Carole Lombard, de sua beleza e de seu perfeito timing cômico como a esposa que adora cutucar a vaidade do marido. Infelizmente, ela faleceria após as filmagens num trágico acidente aéreo, quando viajava para vender bônus de guerra. Apesar dessa nota destoante e da guerra em si, um filme hilário do início ao fim e, se não curou minha dor de cabeça, ao menos me fez esquecer dela por pouco mais de uma hora e meia. A lamentar, na edição recém-lançada pela Wonder/Silver Screen, as legendas em constante descompasso com as falas aceleradas. Ainda assim, a imagem está muito boa neste clássico em preto e branco que seria refilmado nos anos 80 por Alan Johnson, com Mel Brooks e Anne Bancroft revivendo o casal de atores, e que aqui foi lançado como Sou ou Não Sou (1983). Brooks também aproveitaria alguns elementos de Ser ou Não para compor sua famosa sátira Primavera Para Hitler (1968), e que viraria depois o sucesso The Producers na Broadway. Vale uma “olhada”, sempre.
2 comentários:
Não conheço nada de Lubitsch. Sempre que você escreve ou fala sobre ele fico com vontade de conhecer sua obra.
Recupere-se bem, meu amigo.
Bom final de semana.
Beijo.
Lubitsch é um dos prazeres da vida. Suas operetas, como A Viúva Alegre, são fantásticas. E suas comédias de situação são um primor, mesmo nos filmes menores. Se der, arranjo um deles para você saborear.
E já estou melhor, obrigado. De óculos, agora, para variar um pouco. Um beijo, amiga querida.
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