quarta-feira, maio 09, 2007

Marcas da Vida

(Red Road, Reino Unido/Dinamarca, 2006)



Filme atmosférico, ganhador do Grande Prêmio do Júri no último Festival de Cannes, que consagrou com a Palma de Ouro o excelente Ventos da Liberdade (The Wind that Shakes the Barley, 2006), de Ken Loach, e que faz parte do projeto "The Advance Party", co-produção a cargo da dinamarquesa Zentropa de Lars Von Trier, que encabeçou o movimento Dogma, onde três diretores utilizam os mesmos personagens (criados por Anders Thomas Jensen e Lone Scherfig, de Italiano para Principiantes, 2000, e Meu Irmão Quer se Matar, 2002), interpretados pelos mesmos atores para realizarem cada um o seu próprio filme durante seis semanas em Glasgow, Escócia.

Aqui, na terra que inventou e popularizou o termo “Big Brother”, vislumbra-se um mundo bem contemporâneo, de um cotidiano cinzento em que as relações humanas são intermediadas, observadas, registradas e, sobretudo, construídas por meio de dispositivos eletrônicos, no caso câmeras de vigilância onipresentes, cujas lentes se aproximam ou se afastam de pessoas estreitamente vigiadas nas ruas de Glasgow. Porém, quanto mais próximas dessas pessoas, menos se sabe sobre elas. A realidade neste mundo de superexposição de imagens parece escapar o tempo inteiro, sob uma suposta (e enganosa) neutralidade, decupada e fragmentada em inúmeros monitores, a escolha do observador confinado. Em certo momento, essa percepção da realidade, desse simulacro, altera-se. Numa checagem de rotina, um criminoso recém-saído da prisão, Clyde (Tony Curran), é visto pela câmara do circuito fechado de Jackie (Kate Dickie), sobre a qual pouco se sabe a respeito, a não ser que não se dá bem com o sogro, que (mal)transa no furgão com um homem casado e meio bruto, que a apanha no serviço de vez em quando, e que se mostra muito interessada em algumas pessoas que aparecem nos inúmeros monitores que a cercam. Mais do que vigiar, bisbilhotar, acompanhando sempre a rotina diária de indivíduos que a atraem, tanto que nem tem mais paciência de assistir à TV quando chega em casa para (mais) uma solitária noite. Fixa-se em Clyde. Pouco se sabe sobre ele, porém. Ela deixará a sala dos monitores e tratará de segui-lo, sem explicação aparente, a princípio atraída por ele. O que era virtual torna-se real. Ela se aproximará de Clyde, entrará no seu apartamento, no gigantesco bloco de prédios populares de Red Road, conhecerá os amigos dele. Nota-se que uma curiosidade voyeurística a move, curiosidade acompanhada pelo olhar também voyeurístico do espectador. Arma-se o suspense, com os elementos sendo inseridos aos poucos, por meio de silêncios e planos fechados, bem construídos, claustrofóbicos, câmera presa ao rosto angustiado e de olhar sempre atento da protagonista, que a segue como em Dublê de Corpo, de Brian De Palma (1984), em sua busca por um bairro barra-pesada de Glasgow, até a reviravolta, juntando as peças do quebra-cabeça. Seca, sem alarde, sem lições de moral. No fundo, um filme sob expiação de culpa, bem conduzido por Andrea Arnold e que tem como um de seus grandes trunfos a contida e corajosa interpretação de Kate Dickie, que, em busca de justiça, comete outra injustiça ao se deixar seduzir por Clyde ou seduzi-lo (e por tabela envolver o espectador), numa cena de carnalidade quase explícita, até enxergar a alteridade, a encarar o passado com outros olhos, transcendendo-o, reencontrando-se consigo mesma, evitando que o filme caia no fácil caminho do moralismo barato e da punição tipo olho por olho ou justiça a qualquer preço. Humaniza-se, no final das contas. Reinventa-se, transmuta-se de thriller para drama, sem fazer drama, e respira, enfim, aliviado.

4 comentários:

Michel Simões disse...

Gostei bastante do filme!!!!

Lorde David disse...

Gostei bastante, também, Michel. Não entendi o porquê de algumas más críticas. Um abraço.

Anónimo disse...

I watched this movie last year and liked it a lot. Claustrophobically built, realistic locations, suspenseful and last, but not least, terrific performances. Cheers, milord.

Lorde David disse...

That’s right, dear Jane and very gritty performances too, although rather difficult to understand the thick accent from your Scottish blue-collar frrrrrriends of Red Road, if you know what I mean. Bye, milady.